Carlos Alberto Sardenberg, publicado no Globo
“Agora, neste exato momento, eu até fico pensando se não seria bom prender já na primeira instância esses bandidos que andam por aí”.
Não se trata de um voto em alguma corte superior, muito menos de um parecer juntado aos autos. Foi uma frase dita numa conversa rápida com jornalistas, na saída de um evento. Mas, conhecendo-se o autor, a tirada ganha força especial.
Trata-se de Eros Grau, advogado e professor de Direito, como ele se apresenta hoje, e ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, como todos conhecem. Ocorre que ele, se não quer apagar, pretende colocar em plano bem inferior sua passagem pelo STF. “Não me entusiasmo” (por ter sido ministro), comentou.
E, entretanto, sua passagem por lá e sua frase mais recente, dita na última terça, em São Paulo, tiveram e têm enorme e muito atual import��ncia. Ocorre que Eros Grau foi o autor, no Supremo, do voto que, em 2009, mudou o entendimento da Corte sobre a execução da pena.
Até então, entendia-se que o condenado em segunda instância já poderia ser preso e assim iniciar o cumprimento da pena. Grau argumentou ─ e formou maioria ─ que o condenado só poderia ser preso depois de esgotados todos os recursos nas instâncias superiores.
Em 2016, com Grau já fora do Supremo, e por uma apertada maioria de 6 a 5, a Corte voltou ao entendimento anterior: que a prisão após condenação em segunda instância é constitucional e não viola o princípio da presunção de inocência.
Mas o caso não morre aí. Há um debate nacional sobre a necessidade ou não de mudança desse entendimento. Debate que vai pegando fogo na medida em que Lula foi condenado na segunda instância e se aproxima o momento em que o Tribunal Regional Federal de Porto Alegre vai julgar o último recurso e determinar a prisão do ex-presidente.
Temos, portanto, uma questão em tese, de doutrina jurídica, e um caso político, especial, a situação de Lula.
O pessoal, digamos assim, do “velho direito” brasileiro, do garantismo, acha que a prisão em segunda instância é um absurdo. Seguem o pensamento e a prática, como diz o jurista José Eduardo Faria, do direito romano-germânico, “bastante litúrgico, cheio de entraves burocráticos, cheio de sistemas de prazos e recursos que permitiam aos advogados discutir não grandes questões factuais, mas sim teses, pleitear vícios, aguardar que tais pleitos fossem julgados lentamente e, assim, obter a prescrição dos crimes dos seus clientes”.
Dito de outro modo: se o condenado só puder ser preso depois de todos os recursos em última instância, isso significa no Brasil, e muito especialmente no Brasil dos mais ricos, que não vai em cana nunca mais.
Contra o garantismo, surgiu e se desenvolve no Brasil um novo direito penal econômico, praticado especialmente na Justiça Federal de primeira e segunda instância, pelo Ministério Público e por setores da Polícia Federal. Sim, estamos falando, entre tantos, de Curitiba, Sérgio Moro; do Rio, Marcelo Bretas; de Porto Alegre dos desembargadores Thompson Flores, João Pedro Gebran, Leandro Paulsen, Victor Luiz dos Santos Laus.
Na linha do mensalão, essa turma, nos seus 45 anos, e seguindo a descrição de José Eduardo Faria, tem uma “visão mais americana, mais voltada a esse direito penal que vai direto ao foco, que trabalha com a identificação de atos que fogem a determinados padrões. Em geral, essa nova visão do direito penal é, de fato, sustentada por pessoas e equipes que entendem de contabilidade, que usam bem a tecnologia, que têm formação interdisciplinar, que sabem identificar procedimentos de ocultação de propriedades e de patrimônio. É uma turma capaz de descobrir os rastros deixados por documentos em vastas cadeias utilizadas para ocultar patrimônio ou dinheiro sujo”.
Essa doutrina não nasceu por acaso, mas para responder à sofisticação global dos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro, especialmente ligados ao tráfico de drogas e ao terrorismo. No caminho, apanhou sonegadores que escondiam dinheiro no caixa 2.
Essa doutrina começou a se introduzir no país com o julgamento do mensalão e se instalou com o petrolão, já então apoiada nos essenciais instrumentos da delação premiada e do acordo de leniência.
Mudaram as circunstâncias, muda o crime, muda-se o direito penal, mudam-se as interpretações.
Como entendeu Eros Grau. Com tantos bandidos por aí, pode ser o caso de prender esses bandidos da corrupção e do assalto ao Estado logo na primeira instância. O repórter perguntou: “O senhor está falando do Lula?”.
Eros Grau: “Inclusive. Não tenha dúvida nenhuma porque se ele foi condenado depois de uma série de investigações e tudo é porque ele é um sujeito culpado”.
O professor não se julga contraditório. Ele entende que a mudança na realidade (na sociedade, nos costumes, na vida) exige nova interpretação da mesma lei.
O ministro Gilmar Mendes e seus seguidores falam com desprezo do “direito penal de Curitiba”. Seria uma aberração.
Pois, ao contrário, há sim um novo direito, é praticado em Curitiba, e está colocando um monte de bandido na cadeia.