Editorial do Estadão: Solidariedade no frio
É dever da Prefeitura de São Paulo zelar pela boa condição dos abrigos. Sempre haverá, no entanto, quem prefira as ruas
O drama da população que vive ao relento nas ruas de São Paulo aumenta no inverno. O frio é a causa provável de ao menos cinco mortes no Estado desde o fim de semana. Na madrugada de domingo foi registrada a temperatura mais baixa do ano, 6,5º C, segundo o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet). Na capital paulista, a média registrada pelos termômetros foi de 5º C, a mais baixa em três anos. Os mortos, todos moradores de rua, foram encontrados em Santo André, em Assis e na capital, em Itaquera, na zona leste, e na Barra Funda, na zona oeste.
A adversidade climática desta época do ano lança luz sobre o trabalho de acolhimento realizado pela Prefeitura de São Paulo, a solidariedade dos paulistanos e a complexidade da situação dos moradores de rua, muitos dos quais se recusam a ir para os abrigos públicos pelas mais variadas razões.
De acordo com a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (Smads), desde o dia 22 de maio, quando teve início o Plano de Contingência para Situação de Baixas Temperaturas, houve cerca de 470 mil acolhimentos em abrigos da Prefeitura de São Paulo, chamados de Centros de Acolhida. O número de acolhimentos não é o total de cidadãos abrigados, haja vista que uma mesma pessoa pode ser atendida em diferentes dias durante o programa, que vai até o dia 22 de setembro, e não há tamanho número de vagas disponíveis. De todo modo, trata-se de um contingente bem expressivo.
Na cidade de São Paulo há 148 Centros de Acolhida, com cerca de 18,5 mil vagas. Nesses locais, os cidadãos que respondem à abordagem noturna de agentes sociais da Prefeitura — entre 22h00 e 8h00 — recebem roupas limpas, kits de higiene pessoal, refeição, cobertores e lugar para pernoite, além de um espaço para guardar seus pertences.
A ajuda humanitária aos cidadãos que vivem nas ruas da capital paulista não se esgota com a ação institucional da Prefeitura de São Paulo. São muitos os grupos de voluntários que todas as noites nesta época do ano vão para as ruas dar comida, cobertores e não raro suporte moral para os desalentados. Um dos mais ativos desses grupos é o Anjos da Noite, que realiza o trabalho voluntário há 30 anos. São grupos que contam com pouco dinheiro, público ou privado, mas esbanjam solidariedade. “Dinheiro mesmo a gente arrecada pouco. Este mês foram só R$ 700”, disse ao Estado Kaká Ferreira, presidente da ONG. Muitos cidadãos ajudam com doações de alimentos, roupas e cobertores. Outros, com o próprio trabalho, preparando as refeições ou distribuindo-as aos moradores de rua. Ainda há os que prestam socorro ao notificar a Prefeitura de São Paulo — por meio do número 156 — para que agentes sociais abordem pessoas em situação de perigo de vida por conta do frio. Boa parte das abordagens, no entanto, não tem sucesso.
As baixíssimas temperaturas registradas no fim de semana não são causa suficiente para levar uma expressiva parcela dos moradores de rua para os Centros de Acolhida. Muitos recusam a oferta alegando má qualidade das instalações — há relatos de infestações de insetos nas camas dos abrigos —, falta de transporte para retorno aos locais de origem após o pernoite e furto de pertences pessoais. A Smads informou que a Prefeitura de São Paulo tem intensificado a fiscalização dos Centros de Acolhida, que são administrados por meio de convênios com organizações sociais. O secretário adjunto Marcelo Del Bosco disse ao Estado que irá apurar os relatos feitos por moradores de rua à reportagem.
De fato, os depoimentos dos moradores de rua devem ser recebidos com a devida cautela. Evidentemente, os abrigos públicos ainda não são hotéis de luxo, mas, ante a dureza das condições das ruas frias, podem servir como alento, ainda que temporário. Enfim, salvam vidas, apesar de, às vezes, serem precários. Lá, está-se protegido do frio, recebe-se comida, roupas e kits de higiene e estrutura para um banho quente. Não são poucos os cidadãos que estão adaptados ao modo de vida nas ruas e resistem em deixá-las, arriscando suas vidas.
É dever da Prefeitura de São Paulo zelar pela boa condição dos abrigos. Sempre haverá, no entanto, quem prefira as ruas. Todos merecem a solidariedade dos paulistanos.