Publicado na edição impressa de VEJA
“Deus faça com que eu esteja enganado, mas creio ser este o passo do presidente que irá provocar o inevitável, a motivação final para a luta armada.” O líder da maioria na Câmara dos Deputados, Tancredo Neves, era um homem temente da potestade divina, mas sabia muito bem como estavam incontroláveis as forças já à solta quando João Goulart contrariou seu apelo final ao bom-senso e decidiu comparecer à festa dos sargentos no Automóvel Clube, no Rio de Janeiro, no dia 30 de março, o empurrão final para o golpe pelo que representava de um quase literal tapa na cara da hierarquia militar.
Dezessete dias antes, um ainda pouco conhecido cineasta de cabeleira encaracolada chamado Glauber Rocha havia lançado um filme difícil de entender (filmou uma coisa; na hora da montagem, quis outra), mas de título fácil de ser guardado: Deus e o Diabo na Terra do Sol. Tancredo tentava puxar Jango para o lado do primeiro titular do filme de Glauber, mas os que empurravam para o lado do segundo eram mais fortes: os conselheiros militares, chamados de “generais do povo”, achavam que o presidente sairia consagrado da festa. Horas depois, os generais do mundo real já estavam com a tropa na rua.
A divisão entre os militares legalistas e os golpistas (e, entre estes, os da linha branda e os da linha dura) era um espelho dos rachas em curso no Brasil de 1964. O partido de Tancredo, o PSD, também estava dividido (da mesma forma que o outro partido criado por Getúlio Vargas, o PTB; as diferentes lideranças sindicais; as linhagens comunistas divergentes; e, notoriamente, a própria família presidencial). Nem o mais hábil dos hábeis políticos mineiros, nem o homem que dava nó em pingo d’água, que havia sido primeiro-ministro no interregno parlamentarista criado para contornar o primeiro surto golpista contra um João Goulart elevado a presidente pela renúncia de Jânio Quadros, controlaria as fúrias à solta, mas Tancredo tentaria até o fim.
Como Jango, foi para Brasília no dia 1º de abril e enfrentou a manobra do presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, para declarar a vacância da Presidência com um inútil contracomunicado combinado com o chefe da Casa Civil, Darcy Ribeiro, no quase vazio Palácio do Planalto, para desmoldar a realidade: o presidente já estava mesmo em retirada. “Comunico ao Congresso Nacional que o senhor João Goulart deixou, por força dos notórios acontecimentos de que a nação é conhecedora, o governo da República”, proclamou Moura Andrade já na madrugada do dia 2. “Canalha, canalha, canalha”, sibilou Tancredo.
Quando ficou claro que os militares estavam para ficar e o general Castello Branco seria eleito presidente pelo Congresso, comentou com o ex-presidente Juscelino Kubitschek, colega de partido e favorito para uma reeleição que nunca aconteceria: “Eu tenho todos os motivos para votar em Castello e não vou votar; você tem todos os motivos para não votar e vai”. Falou e fez: foi o único político do PSD a não chancelar Castello. Num embate final com forças sombrias na terra do sol, morreu, em 1985, sem assumir o primeiro mandato presidencial pós-ditadura. É um dos dois personagens retratados nestas páginas a ter um neto, Aécio Neves, aspirando à Presidência; o outro é Miguel Arraes, avô de Eduardo Campos.
Colaboradores: André Petry, Augusto Nunes, Carlos Graieb, Diogo Schelp, Duda Teixeira, Eurípedes Alcântara, Fábio Altman, Giuliano Guandalini, Jerônimo Teixeira, Juliana Linhares, Leslie Lestão, Otávio Cabral, Pedro Dias, Rinaldo Gama, Thaís Oyama e Vilma Gryzinski.