Falta meio grama de coragem
Cada parente próximo, cada “guru”, cada ministro e cada Poder da República faz a sua lei e a submete “à sua rede”. E quem pode mais chora menos
Fernão Lara Mesquita (publicado no Vespeiro)
A da Previdência, mais que uma reforma, é uma manobra de ressuscitação, pra ver se o coração de uma economia que está morta volta a bater. A colheita do seu efeito financeiro pleno é esperada em 12 anos. Nos primeiros dois deste governo de quatro que já teria comido seis meses “vendendo” a proposta ao Congresso se se dispusesse a tanto e ela fosse aprovada no prazo previsto, não deixaria de sair nenhum tostão do caixa. Só depois é que, pouco a pouco, a velocidade com que o dinheiro público vaza para o bolso da privilegiatura começaria a diminuir de fato.
A expectativa mais otimista era, portanto, de que, se aprovada, a reforma trouxesse “a valor presente”, na forma de ânimo para voltar a investir, uma parte do seu resultado futuro. O governo Bolsonaro teria, então, um ano e seis meses de redução da velocidade da hemorragia fiscal que pôs a União, os Estados e os municípios à beira da incapacidade de manter os serviços básicos, antes de chegar ao fim. É por isso que Paulo Guedes, a voz que fala pelo Brasil Real neste governo, precisa tão desesperadamente de outras ações que ponham “comida” na mesa do ajuste das contas públicas já. Ele repete isso toda hora, de medo do dinheiro que já está faltando nos Estados e municípios para pagar à polícia e ao hospital, e não por falta de traquejo em “estratégia de tramitação no Congresso”, que é luxo de quem não precisa fazer contas.
Mas com o núcleo delirante que cerca o presidente ralando a confiança em que a expectativa de recuperação da economia se baseia por todos os flancos, nem que dê certo dá certo. A situação é francamente surrealista, pois Jair Bolsonaro recebeu o País com a guerra ganha. A oposição estava esmagada e inerte. A única dificuldade dos primeiros dias era, na verdade, convencer o próprio presidente da profundidade que o resto do País inteiro já sabia que a reforma da Previdência teria de ter. Se não fizesse nada, ganhava fácil a batalha que definirá se haverá ou não outras batalhas. Mas em vez disso, em 85 dias, sem que haja rigorosamente nenhuma questão específica em torno da qual subsista qualquer controvérsia real, todos estão engalfinhados contra todos e o País está à beira de um ataque de nervos.
Os subversivos que tanto excitam a imaginação desse bolsonarismo pavloviano da internet não têm tido, porém, a menor chance. Os três “zeros” se têm encarregado espontaneamente de 100% dos tiros que o governo dá nos próprios pés. E quando não basta, sempre há o João de Deus da filosofia para adicionar, lá da Virgínia, a sua colherada de cizânia em meio a tentativas de estupro das normas de convivência civilizada. Os alarmes e ultimatos são sempre em torno de nada que eles próprios consigam definir o que seja. O que pode existir, afinal, mais “velha política” que manter a ordenha do Estado pelas corporações que o presidente Bolsonaro vive dizendo que adoraria poder ver continuar para sempre? São vaidades em ebulição, nada mais.
O governo eleito em função da crise de hierarquia vai jogando a pá de cal no pouco que restava dela. Do aviltamento do critério de seleção de juízes para a Suprema Corte; das disputas de poder entre os que, entre eles, acendem e apagam a Lei da Ficha Limpa a gosto; da produção de armações ilimitadas no Ministério Público para abortar votações contra seus privilégios; do embaralhamento da ordem cronológica criminalizando, no presente, expedientes eleitorais que eram legais no passado para provar que Lula “só é” porque todos também “seriam”; da “legalização” monocrática de modos criminosos de as corporações amigas assaltarem o Tesouro Nacional, saltamos para algo ainda mais desinstitucionalizado e desprovido de qualquer sentido de prioridade. Como o piloto não assume nada, cada passageiro do governo se vai transformando num governo em si mesmo, com suas próprias prioridades definidas pela vaidade e, seguindo o padrão do chefe, denunciando como “traição ao povo” qualquer forma de contraditório.
Cada parente próximo, cada “guru”, cada ministro e cada Poder da República faz a sua lei e a submete “à sua rede”. E quem pode mais chora menos. Juízes mandam prender ex-presidentes se e quando acordam com essa boa ideia. O incitamento ao linchamento do contraditório salta, então, das convocações explícitas das redes sociais para as incitações veladas das redes de televisão empenhadas nos “justiçamentos” lá delas. Os tribunais atacados por afirmar o que está escrito na lei se arrogam o poder de investigar e punir os seus críticos. E o governo que se elegeu afirmando o direito à legitima defesa conclama o linchamento do representante eleito do povo que, acuado nesses termos, ousa pedir o debate democrático de uma legislação de abuso de autoridade.
Para as questões de momento há um remédio fulminante. Basta o comandante comandar. Meio grama de coragem…
Mas para fazer tudo isso ir voltando ao devido lugar o Brasil tem de incluir democracia representativa na sua ideia de democracia representativa. Sem essa providência elementar, água mole em pedra dura… SEMPRE refluirá como tem refluído. A Lei de Responsabilidade Fiscal já era. O “teto” do funcionalismo tá mais furado que “tauba de tiro ao álvaro”. A prisão após a segunda instância está por um triz. E quem duvida de que, mesmo passando a Previdência, os tribunais, lá adiante, não transformem isso em mais uma das suas minas de ouro, com ressarcimentos retroativos de “direitos adquiridos” violados com juros e correções estratosféricas, como aconteceu com todas as outras reformas que pegaram de raspão na privilegiatura?
Se quisermos ter uma democracia, um dia, teremos antes de definir com precisão quem representa quem na nossa — o que só é possível com voto distrital puro — e atrelar todas as lealdades ao povo, dando a cada representado o direito de demitir o representante traíra. Tentar mudar o Brasil sem isso será sempre, como tem sido, um esforço tão recompensador quanto tentar produzir ciência moderna a partir da crença de que o Sol é que gira em torno da Terra, e não a Terra em torno do Sol.