Fernão Lara Mesquita (publicado no Vespeiro)
Nem mais nem menos corrupto que o resto. O brasileiro é só humanidade. O poder — que corrompe sempre e corrompe absolutamente quando é absoluto — é que é absoluto por aqui. Quanto a isso, aliás, seguimos evoluindo para trás. Tratar o problema exclusivamente com polícia resultou em que o círculo se fechasse ainda mais. De 513 mais estaduais e municipais que nós elegemos pusemo-nos nas mãos de 11 nomeados dos quais, para nos arrancar a pele, bastam 6. Isso se ninguém recorrer à “monocracia”!
Em um único dia de primeiras páginas foi possível colecionar o seguinte. “Gasto com funcionalismo sobe na crise e bate recorde”. “Condenados do mensalão não pagam (nem) multas”. “Verba pública para partidos cresceu 2400% em 24 anos”. “Mortandade de indústrias chega a 2.300 de janeiro a maio”. “Com 42 ações com base em dados do Coaf Toffoli só reagiu à de Flávio Bolsonaro”. “STF impede que Lula seja transferido para cela comum”. “STF impede investigação de Glenn Greenwald”. “STF barra investigações contra o crime organizado”. “STF afasta fiscais e para investigação de ministros e parentes”. “STF quer censura para quem falar mal do STF”…
Acreditar que trocando poderes desse calibre de dono vamos acabar com essa corrupção é acreditar que é possível fazer a humanidade deixar de ser a humanidade. O caso não é de polícia, é de política. De instituições políticas, melhor dizendo. Político, aqui, tem existência própria, independente do povo. Mas eles não foram feitos para “ser”, foram feitos para “representar”. Para ser comandados, não para comandar.
Na democracia, o sistema que o Brasil copiou antes de saber do que se tratava, o povo tem os poderes todos, maiores até que os dos reis, e os seus representantes individualmente nenhuns. Tudo em Pindorama sai pelo avesso porque mesmo com a República o poder, agora aumentado, continuou nas mãos dos poucos, não passou para as dos muitos. É ilusão de noiva esperar que funcione sem o comando do povo uma máquina de governar que foi desenhada para funcionar estritamente sob a batuta dele. O povo, só o povo e ninguém mais que o povo pode ter poderes absolutos. Só dividido pela totalidade da população esse excesso de poder se converte de vício em virtude. E como o povo mora é na cidade, no bairro, a hierarquia, na democracia, exerce-se da periferia, que é a realidade, sobre o centro, que é a ficção política.
Não no Brasil. Aqui a ficção é que manda na realidade. O pouco de federalismo que houve, lá nos primeiros dias da República, Getúlio Vargas matou e nunca mais reviveu. Mas o que vai por escrito é que democracia seguimos sendo e as instituições (não importa quais) “estão funcionando”. E como “todo o poder emana do povo e em seu nome será exercido”, temos, sim, leis e dinheiros “contingenciáveis” empurrados pela periferia que vão todos na direção de garantir educação, saúde e segurança. Só que têm precedência sobre elas as leis e os dinheiros “incontingenciáveis” que regem a vida do centro — a própria Constituição que a isso está reduzida — e desviam tudo o que o outro lado tenta fazer da função para o funcionário, assinando embaixo: “Povo”. Passa então a ser “o brasileiro” — assim difuso — que paga mal ao professor, não cuida da saúde, é violento e irresponsável de um tanto que só não anda matando pelas ruas quem não tem uma arma pra chamar de sua. Liberdade condicional. Vão por aí abaixo as “verdades estabelecidas” que a mídia traga e, sem nenhum filtro, traduz…
E, no entanto, é tão simples. 99% da literatura política do mundo é ininteligível porque não passa de tapeação. Não existe isso de “entender de política”. Meu pai sempre dizia que, quando você lê alguma coisa e não entende, o burro (ou o sacana) é “o outro”. Democracia é coisa de somenos. Como todo bom remédio, exigiu muy especial ilustração para inventar, mas não requer nenhuma para usar. Até o morador de rua analfabeto, lá na cidadezinha dele, sabe se o prefeito asfaltou aquela via pública porque é o que a cidade estava precisando ou porque tinha comprado os terrenos todos. Se o vereador fez aquela lei pra fazer a vida de todo mundo mais fácil ou pra vender a isenção a ela. Se o preço de uma obra está justo ou obeso de roubalheira. Se a dosagem de repressão prescrita é ou não é suficiente para desincentivar o crime. Se o que é exigido do funcionário público deve ou não ser o mesmo que é exigido de todo mundo. Se o salário do político está obsceno de pouco ou de demasia. Se é ou não razoável ele pagar suando o dobro pelo “direito adquirido” a pagar metade dado por um político ao seu vizinho. Se as leis devem ou não ser mudadas assim que se provarem superadas. Quais normas, para além da regra do jogo feita para impedir trapaça na mudança, devem ou não ser “petrificadas” por um complicador adicional de alteração.
Democracia, onde tudo isso se vota, não é mais que isso. E como quem manda é quem demite, para tê-la tudo o que é preciso é inverter a relação hierárquica entre o País Real e o País Oficial. A ligação entre representantes e representados tem de ser concreta para que a marcação se possa dar homem a homem. Só o voto distrital puro com retomada de mandato (recall) permite isso. Qualquer outro entrega o ouro aos bandidos. As regras do jogo têm de ser consensuadas, e não impostas, o que só os direitos de iniciativa e referendo legislativos proporcionam. A Justiça tem de ser tão isenta quanto pode ser a humana, o que requer liberdade absoluta do juiz “enquanto se comportar bem”, critério cuja aferição eleições periódicas de reconfirmação dos seus poderes pelo voto direto do povo tira do céu e traz de volta à Terra. Os poderes do eleitor têm de ser tanto mais absolutos quanto mais próximo se estiver do bairro, a periferia do sistema, e mais contrabalançados na medida em que se aproximarem do centro que muda de lugar com 50% + 1.
A natureza humana não se altera sob a democracia. Mas nela você só paga pelos erros que insistir em perseverar. Dá pra ficar rico!