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Augusto Nunes

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Foi ditadura, e daí?

A nova "hora zero" de 64 explicaria a razão de o País ser hoje uma democracia aberta e representativa e não uma república popular ou socialista

Por William Waack
Atualizado em 30 jul 2020, 19h51 - Publicado em 28 mar 2019, 14h33

William Waack (publicado no Estadão)

O que aconteceu em 31 de março de 1964 foi um golpe, depois veio um golpe dentro do golpe e tudo aquilo foi uma ditadura. Que, ao enfrentar resistência da luta armada de grupos de esquerda antidemocráticos (o termo técnico é terrorismo) e de correntes da sociedade civil organizada (imprensa, sindicatos, universidades, grupos políticos conservadores e liberais) ─ estas últimas são as que tiraram o País do regime de exceção ─, dedicou-se a reprimir, censurar, prender e torturar, contrariando os próprios códigos de conduta das Forças Armadas. E daí?

E daí que o assunto é página virada e, no caso do Brasil, só assume importância política atual por causa da patética dedicação do presidente da República a aspectos secundários da “guerra cultural”. É bem verdade que Bolsonaro não está sozinho nesse empenho em recorrer a algum episódio traumático do passado como forma de moldar o debate político do presente.

Em Israel, o revisionismo do mito de fundação do país influencia também as atuais eleições. Na Rússia, é a interpretação da implosão da União Soviética como uma “catástrofe geopolítica” a ser corrigida que sustenta Vladimir Putin. Na China, o ressurgimento do nacionalismo é uma arma poderosa de legitimação do partido comunista empenhado em desfazer um século de “humilhações impostas por potências estrangeiras”. Nos Estados Unidos, Trump fala de uma “América grande de novo”, como se alguma vez tivesse deixado de ser.

A tentativa de Bolsonaro de dar a 64 uma relevância que também os integrantes do Alto-Comando das Forças Armadas acham que ficou para os historiadores tem pouco a ver com os exemplos acima. É parte do cacoete do palanque digital de campanha eleitoral. E já não se trata de perguntar quando ele vai descer da plataforma da agitação eleitoral e se sentar na cadeira presidencial, pois a resposta está dada: nunca.

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O presidente e seus seguidores mais aguerridos nas redes sociais criam e se retroalimentam de “polêmicas” que, na época pré-digital, se chamavam de briga de mesa de boteco. Sobe o volume da gritaria à medida que o tempo avança e as coisas não acontecem como os “revolucionários” esperavam que evoluíssem. E encontram na “velha política”, nas “oligarquias corruptas”, na “mídia”, no “marxismo cultural” as “explicações” para a própria incapacidade de criar uma narrativa abrangente e dotada de clara estratégia de como tirar o País do buraco.

As reações contrárias de diversos setores à “comemoração” de 64 provocam nos militantes dessa franja da direita brasileira um “frisson” de alegria, como se sentissem confirmados em suas piores suspeitas. São a eles que os atuais comandantes militares se referem quando alertam que não estão dispostos a tolerar nenhum tipo de fanatismo, de um lado ou de outro. É o tipo de recado, porém, que provavelmente fará os mesmos militantes se sentirem reconfortados.

Nesse sentido, as agressões verbais por intelectuais que influenciam Bolsonaro e seus entes mais próximos aos generais no governo (xingados de “idiotas”, “cagões” e “comunistas infiltrados”) não são deslizes típicos da mesa do boteco. Na peculiar visão de mundo que move os agressores, trata-se do necessário resgate do espírito da História, no qual a nova “hora zero” de 64 explicaria a razão de o País ser hoje uma democracia aberta e representativa e não uma república popular ou socialista. Por isso, consideram que “comemorar” o distante 64 seria parte da luta de ideias.

Sem dúvida alguma, ideias têm consequências. E ideias malucas e idiotas costumam ter consequências péssimas.

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