Gurus, charlatões e curandeiros
As religiões podem melhorar nossa vida porque ajudam a carregar o fardo da mortalidade. Mas os seres humanos continuam frágeis e limitados como sempre foram
Fernando Gabeira (publicado no Blog do Gabeira)
Volto de Goiás, onde revisitei o centro de João de Deus, em Abadiânia, e o sítio de Sri Prem Baba, em Alto Paraíso. Duas cidadelas espirituais, atingidas em níveis diferentes por um dos tradicionais adversários do espírito: a carne.
Na década dos 80, visitei o ashram de Rajneesh em Poona, na Índia. Faz anos, portanto, que me interesso pelo tema. Não tenho uma opinião formada, como os autores Joel Kramer e Diana Alstad, que escreveram o livro “The Guru Papers”, cujo subtítulo é: “máscaras de um poder autoritário”.
Eles afirmam que a relação entre guru e discípulos é uma espécie de deslocamento das estruturas sociais autoritárias para o âmbito das relações pessoais. Há algo, no entanto, que minha experiência individual leva a uma concordância com eles: religiões milenares não conseguiram alterar a fragilidade da natureza humana.
Mas isso não é uma grande novidade. O avanço da ciência e da tecnologia também não significou necessariamente um avanço ético.
Kramer e Alstad tratam mais de gurus de origem oriental. No capítulo em que descrevem seu poder sexual sobre os discípulos, destacam duas condições que o favorecem: o celibato e a promiscuidade, no fundo uma ausência de vínculos que deixa o discípulo mais vulnerável.
Alguns gurus de origem oriental vêm de sociedades mais rígidas. No Ocidente, tentam aplicar algumas de suas técnicas e rituais sob o argumento da liberação de impulsos reprimidos.
Em muitos casos, a relação com a discípula é vista como uma espécie de uma graça que a distingue dos outros. Mas há também a tentação de formar haréns com as escolhidas.
No caso de Sri Prem Baba, esses elementos não estão presentes. Mesmo porque, apesar de formado na Índia, ele é brasileiro, oriundo de uma sociedade mais liberal.
Ainda assim, ao me referir de passagem ao caso que teve com uma discípula, afirmei que era relativamente consensual. Isso porque o poder do guru é muito grande. Ao seguir um guru, somos convidados a nos render. Como lembram os autores, paixão significa abandono, deixar rolar: render-se, de uma certa forma, é um caminho para a paixão.
O caso de João de Deus é diferente. Ele é famoso por curar. Quando o entrevistei, percebi alguns traços do rude garimpeiro e uma certa ignorância sobre as forças ou entidades que lhe comunicavam o poder de curar.
Muito possivelmente, a relação entre um paciente e o curandeiro não tem as características de rendição emocional entre guru e discípulo.
Ora é uma necessidade de sobrevivência, ora a superação de um doença que impossibilita a vida plena, ou mesmo uma tentativa de contornar a condenação à morte pela medicina tradicional.
Ironicamente, no caminho para Abadiânia, soube que na cidade próxima, Alexânia, um padre foi condenado por abuso sexual. O mesmo aconteceu em Anápolis, onde João de Deus mora.
O mais irônico ainda é constatar que a concentração de poder nas mãos do guru ou do curandeiro os deixa espetacularmente fragilizados diante da vida.
No mundo político, as delações premiadas são validadas por provas. No universo espiritual, entretanto, basta a palavra do outro para desfechar uma onda de condenação. E isso vale inclusive para os campos onde o poder masculino se impõe: basta ver a comoção que o movimento feminista provocou no universo das artes nos EUA.
As religiões podem melhorar nossa vida porque ajudam a carregar o fardo da mortalidade. Mas os seres humanos, pelo menos foi meu aprendizado de vida, continuam frágeis e limitados como sempre foram.
Por isso, com o olhar de hoje, vejo como charlatanismo a proposta de Che Guevara de criar um novo homem. Na verdade, somos e seremos muito menos importantes do que julgamos ser. Creio que morreria de tédio num mundo perfeito. Por isso, dispenso a crença na vida eterna e procuro me ajeitar com minha condição de simples mortal.
O roteiro da minha viagem era o cinturão espiritual em torno de Brasília, uma espécie de contraponto à permissividade do universo político, onde a carne não chega ser um adversário considerável, no máximo uma distração na longa ordem do dia.