Publicado na edição impressa de VEJA
J.R. GUZZO
Se alguém, seja lá pelo motivo que for, quer impedir que alguma tarefa útil seja executada na cultura brasileira, pode chamar o Ministério da Cultura; o resultado é 100% garantido. E as secretarias de Cultura, ou outros mamutes culturais do poder público – haveria algum risco de fazerem algo de bom? Fiquem todos sossegados: não há o menor perigo de que venha a acontecer, também aí, qualquer coisa que preste. Os fatos, sempre eles, são a prova disso.
O Museu do Ipiranga, monumento básico da cultura de São Paulo, está fechado até 2022; é uma proeza que se candidata ao livro de recordes da cervejaria Guinness. A formidável Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro vive esperando o padre para receber a extrema-unção. (Ainda recentemente passou meses a fio sem ar condicionado, com temperaturas internas que chegaram aos 50 graus. Nos últimos doze anos o governo fez três planos de carreira para seus funcionários; não cumpriu nenhum.)
O Museu Nacional de Belas Artes, também no Rio, com 200 anos de história e sua notável fachada de estilo Renascença francesa, é humilhado por goteiras. As construções das cidades históricas de Minas Gerais e do Norte, relíquias únicas da arquitetura colonial brasileira, podem virar entulho. Cinquenta anos após sua fundação, Brasília, a capital do Brasil Potência, ainda não tem um museu decente. É a vitória do Bolsa-Cupim.
Mas as figuras que mandam desde 2003 na máquina pública brasileira não se contentam com isso. Além de se negarem a fazer o trabalho pelo qual são pagas, querem, acima de tudo, decidir o que é cultura neste país e o que não é — ou o que é cultura certa e o que é cultura errada. São contra, é claro, essa cultura “que está aí”. A única que admitem é a sua, e no Brasil de hoje isso quer dizer “cultura popular”. Basicamente, trata-se de um conjunto de atividades exercidas por pessoas que não sabem pintar, escrever, compor uma melodia, fazer um filme ou montar uma peça de teatro capazes de interessar a alguém — e que são sustentadas, de um jeito ou de outro, pelo Erário, por serem contra a “arte burguesa”, a favor da “arte dos desvalidos” ou praticarem algum outro truque que esconda a sua falta de talento, de mérito e de público.
Seu grão-vizir no momento é o doutor Juca Ferreira, ministro da Cultura (pela segunda vez), ex-secretário da Cultura da prefeitura de São Paulo e marechal de campo no combate contra o modelo de cultura “excludente”; imagina que “uma política cultural abrangente é um essencial instrumento da construção de uma nova cultura política”. O ministro Juca e todos os que ganham a vida como ele formam hoje o Supremo Tribunal Cultural brasileiro. Não cabe nenhum recurso contra as suas decisões.
O último feito de armas dos árbitros que ora determinam se podemos ou não gostar disso ou daquilo deu-se na cidade de São Paulo, governada pelo PT do prefeito Fernando Haddad. Para executar sua “política de cidadania cultural”, a prefeitura resolveu convocar grafiteiros amigos para pichar os “Arcos do Jânio”, um modesto conjunto de arcadas que alivia um pouco a paisagem de deserto do centro de São Paulo. Esses arcos nunca fizeram mal a ninguém. Não são o Coliseu de Roma ou a Catedral de Notre-Dame de Paris, mas é o que temos — e, já que temos tão pouco, supõe-se que esse pouco deveria ser deixado em paz.
Nada disso: a prefeitura de São Paulo tem uma política cultural a executar. No caso, sem consultar ninguém, sepultou as arcadas sob um amontoado de rabiscos, borrões e desenhos deformados. Oficialmente, isso é “arte da periferia”. Na prática, trata-se apenas de degradar a superfície de um muro. Esse tipo de coisa, como se sabe, sempre pode ficar pior, e ficou. Não demorou muito e apareceu, no meio da pichação, um rosto que é a própria fotografia do coronel Hugo Chávez, o líder de massas da Venezuela que a esquerda mais rústica tenta transformar num novo “Che” Guevara, ou algo assim. Chávez? Nem pensar, diz a autoridade municipal. O autor queria apenas pintar um “rosto negro”, só isso. Foi pintando, pintando — e no fim, quem diria, saiu uma figura que é a cara do Chávez. Que coisa, não? Essa vida é mesmo uma caixinha de surpresas.
O prefeito se encanta com o homem que presenteou a Venezuela com a falta de papel higiênico? Problema dele. Mas Haddad foi eleito para governar a cidade por quatro anos; não tem o direito de privatizar a paisagem urbana para exibir suas crenças políticas, nem de mudar o “gosto conservador do paulistano”. Isso não é promover cultura. É fazer propaganda, apenas.