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Não há mais

O Brasil não tinha terremoto nem tsunami. A Vale encarregou-se de, numa tacada, corrigir a dupla falha

Por Roberto Pompeu de Toledo
Atualizado em 30 jul 2020, 19h57 - Publicado em 18 fev 2019, 18h27
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  • Roberto Pompeu de Toledo (publicado na edição impressa de VEJA)

    A mineradora Vale e o poeta Carlos Drummond de Andrade têm em comum o lugar em que vieram à luz — Itabira, Minas Gerais. Drummond nasceu em outubro de 1902; a Vale, com o nome muito mais bonito de Vale do Rio Doce, em 1942, pela pena de Getúlio Vargas, mas iniciou efetivamente suas atividades ao assumir a exploração do ferro do Pico do Cauê, em Itabira, em outubro de 1943. Drummond, na infância, via o Pico do Cauê da janela de sua casa. Nessa época o ferro era explorado pelos ingleses da Itabira Iron. No poema Itabira, incluído em seu livro de estreia (Alguma Poesia, de 1930), ele escreveu:

    Cada um de nós tem seu pedaço do pico do Cauê.
    Na cidade toda de ferro as ferraduras batem como sinos.
    Os meninos seguem para a escola.
    Os homens olham para o chão.
    Os ingleses compram a mina.
    Só, na porta da venda, Tutu Caramujo cisma na derrota incomparável.

    O “progresso” batia às portas. Numa crônica de 1933, Drummond evocou a utopia em que “uma usina imensa reuniria 10 000 operários congregados em cinquenta sindicatos, e alguma coisa como Detroit, Chicago, substituiria o ingênuo traçado das ruas do Corte, do Bongue, dos Monjolos”. Tutu Caramujo, pequeno comerciante da cidade, faz no poema o papel de cético.

    Brumadinho, assim como Itabira e Mariana, vendeu a alma à Vale

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    Mesmo sem ter virado uma Detroit, Itabira estabeleceu com a mineração um pacto de vida ou morte — e quem entrou com a morte foi o Pico do Cauê. Ele estava para Itabira como o Itacolomi está para Ouro Preto, ou o Itambé para Diamantina. Era o ponto de referência, o marco a orientar, como poderoso sinalizador, desde os índios e os garimpeiros até os turistas. “Aqui fica Itabira”, dizia. Pois o Cauê, que tinha 1 340 metros de altura, foi comido de alto a baixo. No poema A Montanha Pulverizada, Drummond escreveu:

    Esta manhã acordo e não a encontro.
    Britada em bilhões de lascas,
    deslizando em correia transportadora
    entupindo 150 vagões
    no trem-monstro de 5 locomotivas,
    — o trem maior do mundo, tomem nota —
    foge, minha serra, vai,
    deixando no meu corpo e na paisagem
    mísero pó de ferro, e este não passa.

    Itabira está a 150 quilômetros de Brumadinho. A uni-las, e a Mariana e a outras, está que venderam a alma à Vale. Do Pico do Cauê, que era a alma de Itabira, restou uma cratera. Brumadinho ficou conhecida Brasil afora e além pelo museu a céu aberto do Instituto Inhotim. Hoje, Brasil afora e além, é identificada com a lama, e se fosse só a lama seria pouco, pois sob a lama há os corpos. As imagens do exato momento em que a barragem se rompeu vão ficar para a antologia universal das imagens de terror como a dos aviões a destruir as torres gêmeas. Numa, avançando de lado, a lama é a língua de um réptil gigante a buscar humanos como se fossem insetos; noutra, vista de frente, é um monstro a expelir um vômito de sujeira, veneno e morte. O Brasil não tinha terremoto nem tsunami. A Vale encarregou-se de, numa tacada, corrigir a dupla falha.

    Drummond termina o poema Confidência do Itabirano dizendo: “Itabira é apenas uma fotografia na parede / Mas como dói!”. E no poema José afirma que não adianta querer ir para Minas, porque “Minas não há mais”. São suspiros de desalento que cabem em Brumadinho. Para alguns terá virado apenas uma fotografia na parede; para outros não há mais. Tutu Caramujo, na porta de sua venda, balança a cabeça. O Brasil não tem jeito, cisma, identificando uma derrota incomparável.

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