Com o aplauso que aprova ou com o silêncio que consente, a torcida do Flamengo que testemunhou o espetáculo da estupidez explícita endossou a transferência do drible para a categoria dos crimes hediondos. Coube ao zagueiro Juan, no primeiro jogo da final contra o Botafogo, mostrar no gramado do Maracanã como devem ser tratados, segundo as normas do País do Futebol, o delito em si e quem se atrave a cometê-lo. Coube ao botafoguense Maicosuel, neutralizado segundos antes de consumar a irregularidade, ilustrar a lição ministrada pelo zagueiro flamenguista. O atacante exemplarmente atacado aprendeu que drible deixou de ser demonstração de talento, sinal de alegria, marca registrada de craque brasileiro. Virou coisa de meliante, ato criminoso especialmente intolerável quando a vítima é outro operário do futebol.
A um metro do perigo, o craque botafoguense cometeu sucessivos pecados mortais. Colocou o pé direito sobre a bola. (É muita arrogância, irritou-se Juan). Rolou-a para a esquerda e devolveu-a de imediato com um toque quase imperceptível. (É muita molecagem, encolerizou-se Juan). Empurrou-a com o pé direito três passadas além, já na fronteira da grande área. (É agora, resolveu Juan). Maicosuel já havia girado o corpo para o arranque quando o alvo do insulto o impediu de encontrar a bola no local combinado: com um carrinho letal, Juan matou o drible e derrubou o criminoso.
É pouco, decidiu enquanto contemplava o corpo estendido no gramado. A tabelinha das chuteiras foi uma agravante que exigia algum castigo adicional. E então o homem da lei inclinou-se sobre Maicosuel, como se o tivesse subjugado, aproximou a boca do ouvido indefeso e disse o que ele próprio se proibiu de repetir numa entrevista coletiva inverossímil.
A voz até aqui de mágoa, reiterou que o que Maicosuel fizera não se faz com ninguém. Não se pode humilhar um colega, sobretudo um colega com mulher e filhos. O que diria em casa?, quis saber. Nenhum dos jornalistas presentes lembrou-se de ler em voz alta a sublime descrição dos minutos iniciais do jogo entre o Brasil e a Rússia na Copa de 1958 publicada pelo jornalista Ney Bianchi na revista Manchete Esportiva:
Monsieur Guigue, gendarme nas horas vagas, ordena o começo da partida. Didi centra rápido pra direita: 15 segundos de jogo. Garrincha escora a bola com o peito de pé: 20 segundos. Kuznetzov parte sobre ele. Garrincha faz que vai para esquerda, mas não vai, sai pela direita. Kuznetzov cai e fica sendo o primeiro João da Copa do Mundo: 25 segundos. Garrincha dá outro drible em Kusnetzov: 27 segundos. Mais outro: 30 segundos. Outro. Todo estádio levanta-se. Kuznetzov está sentado, espantado: 32 segundos. Garrincha parte para a linha de fundo. Kuznetzov arremete outra vez, agora ajudado por Voinov e Krijveski: 34 segundos. Garrincha faz assim com a perna. Puxa a bola para cá, para lá e sai de novo pela direita. Os três russos estão esparramados na grama, Voinov com o assento empinado para o céu. O estádio estoura de riso: 38 segundos. Garrincha chuta violentamente, cruzado, sem ângulo. A bola explode no poste esquerdo da baliza de Iashin e sai pela linha de fundo: 40 segundos. A platéia delira. Garrincha volta para o meio de campo, sempre desengonçado. Agora é aplaudido..”
“A torcida fica de pé outra vez. Garrincha avança com a bola. João Kuznetzov cai novamente. Didi pede a bola: 45 segundos. Chuta de curva com a parte de dentro do pé. A bola faz a volta ao lado de Igor Netto e cai nos pés de Pelé. Pelé dá a Vavá: 48 segundos. Vavá a Didi, e esta a Garrincha, outra vez a Pelé, Pelé chuta, a bola bate no travessão e sobe: 55 segundos. O ritmo do time é alucinante. É a cadência de Garrincha. Iashin tem a camisa empapada de suor, como se já jogasse há várias horas. A avalanche continua. Segundo após segundo, Garrincha dizima os russos. A histeria domina o estádio. E a explosão vem como o gol de Vavá, exatamente aos três minutos”.
Foram os três minutos mais deslumbrantes da história do futebol, concordam há 50 anos todos os torcedores de todos os países. Nas arquibancadas do estádio em Gotemburgo, homens, mulheres e crianças de olhos azuis e cabelos louros tinham a expressão de quem via um filme de Charles Chaplin. Os jogadores russos acompanhavam o balé incomparável com cara de quem vai pedir um autógrafo. Os craques a caminho da imortalidade bailavam sem sobressaltos. “O futebol brasileiro é alegre, feliz, como o povo brasileiro”, comoveu-se o artilheiro francês Just Fontaine. Era.
Se em vez de Kuznetzov houvesse um Juan, os três minutos deslumbrantes não chegariam a 10 segundos. O zagueiro bisonho acabaria com a humilhação no primeiro drible de Garrincha. Na segunda tentativa, acabaria com o próprio Garrincha.