Para onde vamos
Artigo publicado na edição de VEJA desta semana. J. R. Guzzo O comportamento da Receita Federal ao longo de todo o episódio da violação do sigilo de seus contribuintes ficará na história como uma desgraça para o serviço público brasileiro. O responsável final por isso é o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Nenhum presidente […]
Artigo publicado na edição de VEJA desta semana.
J. R. Guzzo
O comportamento da Receita Federal ao longo de todo o episódio da violação do sigilo de seus contribuintes ficará na história como uma desgraça para o serviço público brasileiro. O responsável final por isso é o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Nenhum presidente da República pode responder pelos atos de 550 000 funcionários ativos do serviço civil da União. Mas pode escolher, perfeitamenteo papel que vai desempenhar quando um ou vários deles desrespeitam a lei; só depende, aí, da sua livre e espontânea vontade. Lula, desde o começo do caso, optou por ficar contra os cidadãos que tiveram seus direitos agredidos e o grupo político ao qual, de uma forma ou outra, estão ligados. O resultado, na prática, é que as autoridades legalmente responsáveis pela manutenção do sigilo dos contribuintes, e por tomar providências quando ele é violado, se sentem autorizadas, ou até obrigadas, a esconder a verdade sobre o que aconteceu, proteger quem cometeu o delito e concluir, um dia, que ninguém no governo tem culpa de nada. Não dá para ser diferente.
Lula, quando o caso já estava fervendo havia semanas, lembrou-se de pedir uma “investigação rigorosa” dos fatos ─ mas começou, ao mesmo tempo, a fazer comícios dedicados a insultar, menosprezar e ameaçar os adversários, repetindo que era tudo uma “armação eleitoral”, “baixaria”, “desespero” etc. Antes da investigação terminar, assim, já tem certeza do resultado. E quem, entre seus subordinados, estaria disposto a ir contra a posição do presidente? De lá para cá, Lula só aumentou o tom. Ultimamente tem dito que a oposição está praticando “um crime contra o povo”, ou “contra a mulher brasileira”, quando o único crime que houve mesmo, até agora, foi contra o Código Penal.
Não há como tornar os fatos melhores do que eles são. Dados da declaração de renda do vice-presidente nacional do PSDB, Eduardo Jorge, foram desviados da Receita Federal e aparecem num “comitê de inteligência” a serviço da campanha eleitoral da candidata oficial Dilma Rousseff: num segundo momento, descobriu-se que fora violado, também, o segredo fiscal de Verônica Serra, filha do candidato de oposição José Serra. Os violadores, nos dois casos, são cidadãos com longa militância no PT ─ um deles, inclusive, é funcionário da própria Receita. O que mais seria preciso para surgirem suspeitas de que os delitos poderiam ter motivos políticos? Mas o governo, desde o primeiro minuto, garantiu que não havia nenhuma ligação com a campanha eleitoral ─ e, a partir daí, a defesa dessa teoria tem resultado em desastre sobre desastre.
O argumento central das autoridades é que a violação de sigilo dos contribuintes é a coisa mais normal do mundo; dirigentes da Receita Federal, ninguém menos que eles, nos garantem que ali funciona a toda um ativo “balcão de negócios”, em que se podem comprar e vender informações. Ou seja: o que Dilma, o PT ou o governo têm a ver com isso? É, possivelmente, um caso inédito em que a autoridade pública, para defender-se da prática de um crime, acusa a si mesma de conviver sossegadamente com a prática de outro ─ por atacado e de gravidade ainda maior, pois além das vítimas conhecidas envolve milhares de cidadãos brasileiros cujas declarações de renda são abertamente negociadas na praça.
Daí por diante, o que estava ruim só piorou. O ministro da Fazenda, Guido Mantega, a quem a Receita Federal está subordinada, não notou problema algum no que disseram seus dirigentes. A certo momento, eles se viram metidos numa disputa judicial não com as funcionárias cujas senhas foram utilizadas para o deleito, uma das quais, aliás, informa que seu computador “liga sozinho” ─ mas com uma das vítimas, Eduardo Jorge, para negar-lhe acesso a dados da investigação.
Em outro momento inesquecível, chegaram a sustentar que foi a própria Verônica Serra quem solicitou, através de procuração, os dados de suas declarações ─ apenas para admitir, em seguida, que a procuração tinha pelo menos seis falsificações grosseiras. Esconderam esse fato por um dia inteiro, levando gente graúda do governo a jactar-se de que havia “um papel explicando tudo”. Para completar, o chefe da Receita, Otacílio Cartaxo, alegou que os subordinados tinham obrigação de aceitar o documento falso, por força “do Estatuto dos Funcionários Públicos”.
Nada disso fez o presidente da República pensar um pouco melhor no que anda fazendo ─ ao contrário. É mais uma pista, entre outras, a indicar para onde vai nos levando sua notável popularidade.