O mundo nunca adormece igual ao que era quando acordou, mas o ritmo de suas metamorfoses, às vezes sonolento, às vezes vertiginoso, varia segundo o espírito do tempo. É indiscutível que, na época que nos tocou viver, as transformações mundiais são vertiginosas. O que nunca se sabe, quando se vive no olho do furacão das mudanças, é o destino final. Em 1950, a pensadora Hannah Arendt, no prefácio de seu monumental Origens do Totalitarismo, começa a descrever as incertezas de seu tempo com uma frase demolidora: “Nunca antes nosso futuro foi mais imprevisível”. E prossegue com um raciocínio em nada estranho aos dias de hoje: “Nunca dependemos tanto de forças políticas que podem a qualquer instante fugir às regras do bom-senso e do interesse próprio — forças que pareceriam insanas se fossem medidas pelos padrões dos séculos anteriores”.
Para o bem ou para o mal, ainda que todos esperemos que seja para o bem, o Brasil e o mundo, neste inusitado século XXI, atravessam uma era perfeitamente imprevisível, pois a ordem estabelecida — os valores, as práticas, os consensos — parece dissolver-se num amálgama desconhecido. O sintoma mais evidente desse fenômeno está na enorme polarização nas democracias liberais. Polarização na política, na economia, na vida social, nos códigos morais, na cultura. Por isso, buscando refletir do modo mais acurado possível o espírito de nosso tempo, VEJA escolheu a polarização como tema desta edição de retrospectiva.
Nas páginas seguintes, logo depois de um resumo dos principais fatos da semana, o leitor encontrará um amplo painel das antíteses do Brasil e do mundo, começando com uma esclarecedora introdução de Roberto Pompeu de Toledo, articulista de VEJA, para quem estamos encerrando “o ano da polarização tóxica, venenosa, insidiosa, perversa”. Cada seção abre-se com uma reportagem sobre a polarização de uma determinada área, à qual se segue um artigo que situa e amplia a discussão. Entre eles está o de Ian Bremmer, presidente do grupo Eurasia e professor da Universidade de Nova York, escrito exclusivamente para VEJA. No artigo, Bremmer propõe uma interpretação da natureza das transformações que vivemos, nos Estados Unidos e no Brasil: “O centro político está desaparecendo. Essa é a grande mudança em relação à geração anterior, e tem a ver tanto com a emoção quanto com a ideologia”.
É assustador, mas também estimulante, conviver com transformações viscerais. Espera-se que o Brasil, em que pese a fenda abissal que certas mitologias de esquerda e de direita abriram na sociedade nos últimos anos, aproveite a energia liberada deste tempo convulsionado para encarar suas mazelas históricas — e, ao fim desse processo, acima das polarizações e das diferenças, quem sabe nasça um país melhor, democraticamente sólido, economicamente forte, socialmente justo, culturalmente elevado.
Publicado em VEJA de 26 de dezembro de 2018, edição nº 2614