Fernão Lara Mesquita (publicado no Vespeiro)
Entre a impunidade completa dos assaltantes do Estado e a total ausência de defesas contra as prisões “preventivas” sem que haja nada a prevenir; entre a omissão cúmplice e a hiperatividade jurídico-policialesca; entre o “garantismo” de uns e o “ativismo” de outros, o Brasil Real segue paralisado pelos movimentos pendulares a que tem sido empurrado pelos grupos da privilegiatura em disputa pelo poder sem que tenhamos avançado um centímetro sequer nas reformas institucionais mapeadas desde Montesquieu para pôr o povo no poder e cada um dos três Poderes no seu devido lugar e oferecer um terreno minimamente sólido para a retomada do desenvolvimento econômico.
Uma série de ondas entrecruzadas explica a progressiva perda de racionalidade do processo brasileiro.
O terrorismo internacional fez avançar as tecnologias de rastreamento de dinheiro e as polícias brasileiras, de carona no processo, pediram e obtiveram, de políticos que sempre se imaginaram intangíveis, a aprovação de leis mais fortes contra o crime organizado que, além da curva, permitiram a um grupo divergente do padrão do Judiciário brasileiro montar quase por acidente a Operação Lava Jato, que quebrou a impunidade ancestral também do crime organizado de colarinho-branco.
Esse processo, excepcional e isolado, correu totalmente à margem do longo trabalho de aparelhamento do Judiciário, em especial pelo rebaixamento dos critérios de escolha de juízes do Supremo Tribunal Federal, que vinha avançando ao longo de toda a “Era PT” como preparativo para o modelo bolivariano de golpe, em que o Judiciário aliado ao Executivo avança sobre o Legislativo até anular completamente qualquer instância de poder eleito pelo povo. A Lava Jato provocou, no entanto, um efeito devastador no projeto de poder do lulismo. Mas, na sequência, progressivamente instrumentalizada pela luta política, acabou por triturar um Poder Legislativo encurralado pela tática de resistência do lulismo que consistiu em igualar o País inteiro pelo seu padrão de conduta para isentar-se de culpa. “Eu sou, mas quem não é?”.
A identificação entre o crime de corrupção eleitoral e o desvio de conduta do “caixa 2” foi o golpe que fechou a porta a uma reconstrução do País por dentro da política e precipitou uma luta surda pelo poder de que a cruzada contra a corrupção se tornou mera caudatária. A crise da imprensa ─ traduzida no nefasto “jornalismo de acesso” a dossiês produzidos pelas partes em luta ─ e a polarização ideológica precipitada pelo condicionamento pavloviano contra qualquer possibilidade de aprofundamento dos raciocínios políticos nas redes sociais completaram o desastre.
Hoje a torcida, tanto mais cega quanto mais barulhenta, divide-se apaixonadamente entre os que nos roubam com a lei, institucionalizando privilégios que atribuem a si mesmos ─ estes tidos em muy alta conta ─, e os que nos roubam também contra a lei ou nos interstícios da lei, dependendo de se fazem isso declarando-se “de esquerda” ou declarando-se “de direita”. Mas, apesar de permanecerem mais fechadas do que nunca antes as portas da política a qualquer pessoa estranha às corporações que ordenham o Estado e do vertiginoso aumento do número de representantes eleitos oriundos do Poder Judiciário, do Ministério Público e das polícias que saltaram para a seara da política, ninguém se lembra de perguntar: por que à Lava-Jato é vedado investigar o Poder Judiciário? Por que é interditado ao Ministério Público propor delações premiadas contra juristas? Por que um advogado propor a seu cliente que inclua um juiz na sua delação premiada equivale a condenar-se a nunca mais ganhar uma causa num tribunal brasileiro? Por que essas mesmas corporações são as que detêm os mais altos privilégios dessa privilegiatura que esgotou até à ultima gota ─ 97% após o último golpe, na semana passada ─ o orçamento público do país que cobra os impostos proporcionalmente mais altos do mundo?
E, no entanto, o tema é velho como a humanidade. “Para os amigos, tudo. Para os inimigos, a lei“. É ela o mais formidável de todos os “argumentos”. Conta com o monopólio da força para encerrar carreiras, matar biografias, cassar liberdades, confiscar bens e até tomar a vida de quem ousar enfrentá-la. Daí ser a questão central de toda a luta da humanidade contra a opressão garantir que a lei seja posta exclusivamente a serviço da justiça, e não, como sempre foi desde tempos imemoriais, um mero instrumento a serviço do poder.
“Todo poder emana do povo e em seu nome será exercido” é o resumo da resposta. O que remete às quatro questões subsequentes. 1) Como garantir um sistema de representação que seja efetivamente representativo? Com eleições distritais puras, as únicas que permitem saber exatamente quem é cada um dos representados de cada representante. 2) Como garantir que a lealdade dos representantes não se desvie dos seus representados? Condicionando a continuação do seu mandato ao julgamento de cada um dos seus atos por esses representados. 3) Como impedir que os representantes fiquem expostos ao uso da lei contra eles em função da luta política, e não do interesse da justiça? Dando-lhes imunidade contra determinadas leis enquanto o seu representado sustentar o seu mandato, o que, na prática, tira da mão de todos os outros agentes públicos a decisão de acionar a lei contra eles. Isso deixa a decisão de acionar ou não a lei contra o ladrão de dinheiro público exclusivamente aos roubados, e não aos concorrentes ou aos adversários do ladrão na disputa política ou por “territórios privativos de caça”. 4) Como conseguir, finalmente, que tudo isso chegue a bom termo em tempo hábil e com penas compatíveis com os crimes cometidos? Dando aos eleitores os poderes de propor leis que os legisladores ficam obrigados a processar, recusar leis “tortas” vindas dos Legislativos e fazer eleições periódicas de confirmação dos bons juízes e exclusão dos maus.
Não existe terceira via. Vai bem no mundo quem vive num sistema assim. O resto vai à brasileira…