Valentina de Botas: A moralização segundo a GH do Petrolão
A contínua defesa do indefensável por meios vis faz o sofrimento ensaiado dessa Gleisi Hoffmann reafirmar a substância autoritária da súcia lulopetista e respectivos discípulos
Quando Gleisi Hoffmann questionou a moral do Senado para julgar Dilma Rousseff e admitiu que é investigada, me lembrei de que, no organograma da operação Custo Brasil deflagrada pela Polícia Federal, a senadora acusada de receber 1 milhão de reais em propina do petrolão é designada pelas inicias GH. Então, pensei na mulher que ousou desequilibrar-se de si e experimentou a massa repugnante expulsa da barata espremida na porta do armário do quarto da empregada e, então, saber de si. Atenção, o si não é eu: eu é somente – sem ser pouco – a moldura limitante do si.
Frequentemente, nos livros de Clarice Lispector, o banal deflagra acontecimentos internos que transformam as personagens que se (re)descobrem. Em “A paixão segundo GH”, tudo se dá quando ela entra no quarto da empregada depois de seis meses que esta se demitira. A incursão desconcertante pela linguagem simultânea à incursão pelo apartamento, até silenciar pensamento e código plasmados no eu como invólucro do qual o ser se liberta, culmina no nauseante ato finalmente indizível para que o ser seja.
Não bastava excluir as palavras e sepultá-las no silêncio sobretudo porque o silêncio cava palavras, portanto era necessário suspender o fluxo da linguagem/pensamento naquela ação nojenta e desestabilizadora. Essa refundação do ser no desfazimento da linguagem continua no livro “Água viva” publicado em 1973, nove anos depois de “A paixão…”, assim: “(…) atrás do pensamento não há palavras: é-se, nesse terreno do é-se, sou puro êxtase cristalino; é-se, sou-me, tu te és”.
Mas não tente fazer isso em casa, por favor. Se você está mais ou menos organizado, quase resolvido, confortável com um mínimo de bagunça que a cabeça da gente precisa para funcionar (a minha, ao menos), então relaxe, aceite, agradeça reverente e aproveite a dádiva das inquietudes. Nada desse exibicionismo moderninho de sair da zona de conforto, a não ser que ela incomode como incomodava GH com toda aquela comodidade de uma vida que a impedia de se sentir viva. Do contrário, fique onde está, pois só você sabe o quanto andou até chegar aí.
Em GH, a tradução da angústia em náusea num trajeto fundindo alma e corpo, ou seja, o sofrimento de se desmanchar, refazer-se e descobrir-se no que se é revela-se como paixão em alusão ao martírio de Cristo como ato de amor em que o divino se revela – amor pela vida/existência, reconhecendo-a como Graça concedida ao inumano (a barata) e ao humano que talvez sejam ou participem de uma coisa só: o divino feito real num quartinho dos fundos.
Imaginei que no intervalo entre a fala da senadora e o nariz arrebitado a níveis estonteantes da canastrice para o documentário ficcional que os defensores de Dilma encenam, a GH do Petrolão teria a coragem de se transformar no que é, admitindo o que fez. Achei que, num impulso a que o sofrimento ou o amor impelem, ela reconheceria o lulopetismo como barata finalmente esmagada pelas leis e por um país enojado, com as antenas movidas ao ritmo agônico do fim, com a massa nojenta exposta que a senadora deglutiria reacomodando as próprias vísceras e libertando-se na epifania do invólucro vigarista rompido.
Não, mas, de certa forma, sim: a contínua defesa do indefensável por meios vis no vil espetáculo no Senado faz o sofrimento ensaiado dessa GH reafirmar a substância autoritária da súcia lulopetista e respectivos discípulos que jamais reconhecerão a legitimidade de nenhum juiz, instituição ou lei para os julgar. Como se, na sustentação do embuste, GH reafirmasse a porcaria que ela e o que defende compõem: um embuste.
Moral do Senado para julgar? Ora, para GH, moralização é subordinar as leis do país às do bioma lulopetista. Como no pensamento mágico, em que as palavras são mais potentes do que apenas substituir a coisa que nomeiam no discurso e passam a ser a própria coisa esgotando a realidade porque se transfiguram nela, numa prestidigitação em que a palavra “cachorro” morde, Dilma é honesta porque assim ela se diz e Lula é a alma mais honesta deste país porque assim ele se declara: se os lulopetistas dizem, assim é, não importa o que estabeleçam todas as leis.
Mas a palavra, coitadinha, não diz nada, quem diz é o acordo tácito entre quem fala e quem ouve. Na vida que temos para tocar, essa potência termina logo aqui, no discurso – o terreno onde a palavra deita e rola, faz e acontece. Então, assim como viver é melhor do que sonhar, pois, como disse Woddy Allen, sonhar é essencial e bom, mas é na vida vivida que se pode comer aquele bife, é lastimável que tanta potencialidade se esgote no discurso: falar que fará não é fazer, falar o que se é não é ser. Em pessoas de bem, isso pode ser só triste hesitação ou autoengano; nas farsantes, é só farsa mesmo.
A farsa lulopetista é, portanto, a expressão da incompatibilidade com o Estado de Direito Democrático porque o pior fenômeno da história da política brasileira é impermeável às leis, por isso a GH do petrolão grita, com seu sal insípido, a antonímia à civilização.
Não pretendi aproximar a magnífica Clarice Lispector da crônica de vida e morte do lulopetismo, os paralelos imperfeitos que tracei apenas forneceram a profilaxia de que preciso quando falo da súcia que ainda se impõe como tema. Penso que a vida é Graça, sim; é imensa; com assuntos infinitos e a política, pelo menos essa coisa abjeta em que ela se tornou sob o lulopetismo, nem é o meu preferido; e mesmo que por algum milagre todos os meus defeitos fossem eliminados, eu ainda seria esta mulher imperfeita que vê até no catastrófico lulopetismo coisas positivas para o Brasil, como a extinção do jeca soteriológico e a desmoralização da estúpida concepção esquerzoide de Estado viabilizada no gangsterismo de Estado.
Nas próximas horas, ainda seremos submetidos à grotesca encenação de Dilma Rousseff no Senado, esfregando na nossa cara que rouba até o protagonismo de um sofrimento que é todo do Brasil. Mas, em seguida, com uma pá de lixo de cabo bem comprido, recolheremos essa barata ao lixo e a cada dia, enquanto cerzirmos o país, ela sumirá mais um pouco das nossas falas, do nosso pensamento e das nossas vidas.