A revista Time escolheu como personalidade do ano mulheres que denunciaram o assédio do maníaco produtor de Hollywood, Harvey Weinstein. Algumas das “vítimas” (já explico as aspas) são retratadas na capa. Não li a matéria, mas, pelos comentários a respeito, essas mulheres são celebradas como heroínas por terem denunciado o assédio depois de 5, 15, 20 anos. Desculpem-me os mais engajados na assepsia de um passado e presente que, na minha opinião, não são habitados por heróis nem mocinhas, ainda que colonizados por criminosos. Estes são os assediadores, deixo claro, entretanto as assediadas que obtiveram o que só Weinstein poderia conceder no seu amplo feudo hollywoodiano são cúmplices dele. Há o caso de uma atriz que o acusa de tê-la assediado três vezes! Na primeira, ela poderia alegar não saber o que poderia acontecer na suíte já notória do produtor, mas na segunda e na terceira, o que ela pretendia? Dar ao tarado serial uma chance de remissão? Por favor, senhores, isso é brutal desrespeito com vítimas sem voz, sem alternativa, sem amparo ou defesa.
Não foi só uma vez nem duas que sofri assédio. A coisa é infernal, creiam, e pode afetar a nossa saúde se não mobilizarmos a força do nosso caráter ou não tivermos algum tipo de apoio. Não importa se sou bonita ou não porque assédio tem pouco a ver com a beleza da vítima, é muito mais uma questão de o assediador experimentar a delícia torpe a que sua libido patológica o obriga: o exercício dos podres poderes que uma determinada ordem das coisas lhe confere e cuja efetivação depende do conluio com a própria “vítima”, que, então, tem também um papel ativo. O que fiz? Recusei o papel. Não o papel naquele filme que eu queria tanto, mas o papel de cúmplice num ato abjeto contra mim mesma. Perdi promoções, amizades e outras oportunidades, mas desconfio de que nada disso me pertencia e aquilo que me pertencia me chegou por outros caminhos.
Não tenho competência nem disposição para julgar ninguém; inúmeras mulheres sofreram caladas com a boca de feijão e por instintos básicos como o medo (ou intimidação, o medo fertilizado por dada ordem social ou cultural) ou o da sobrevivência; outras silenciaram obedecendo a cabeça fraquinha; outras ainda com a alma cheia de ambição para as quais aquilo era meramente um negócio em que as partes entregavam o que tinham. Cada um sabe de si e deve ser responsável pelas decisões de subir à suíte do asqueroso Weinstein. Mas, depois de acordada a tratativa, as “vítimas” (estão claras as aspas?) que desfilaram no tapete vermelho do Oscar, que desceram na escala do amor próprio para ascender na escala do sucesso poderiam recuperar a dignidade que eventualmente tiveram um dia não apontando o comparsa dessa trajetória, mas reconhecendo que extraíram vantagens de um mundo odioso do qual queriam participar e não mediram esforços para isso. Não estou culpando as vítimas, culpo Weinstein, mas não celebro como heroínas quem topou o que poderia ter recusado.
Vi comparações com o caso de Mike Tyson que, há 25 anos, foi condenado por estuprar Desiree Washington, a jovem que aceitou “conversar” com o boxeador no quarto do hotel onde ele estava hospedado. Não se sustentam, pois Desiree disse “não” e “não” é “não” em qualquer ponto da tal conversa. O exame de corpo de delito revelou que a moça estava machucada, evidenciando que tudo se consumou contra a vontade dela. Weinstein, pelo que consta, sempre recuou diante dos poucos “não” que ouviu. Posso estar completamente equivocada, como sempre se pode estar, mas tenho a sensação de que mais merecedoras de eleitas personalidades do ano pela Time são, por exemplo, a figurinista da Globo, Su Tonani, que não topou as investidas de José Mayer, e outras incontáveis mulheres que estrelaram a própria dignidade numa silenciosa, anônima e custosa vitória sem tapete vermelho.