A rádio Jovem Pan contou semanas atrás que a filósofa Marilena Chauí, numa palestra do colégio Oswald, um dos mais caros de São Paulo, afirmou que “quem defende a família é uma besta”. O grêmio do colégio reagiu, dizendo que a rádio tirou do contexto frases da filósofa com o intuito de ridicularizá-la.
Passou despercebido nessa polêmica um erro grosseiro que Marilena Chauí transmitiu aos alunos do Oswald. Lá pelo fim da palestra (a partir de 1h27min deste vídeo), ela reproduz um antigo mito marxista, já desacreditado há décadas, de que a família nuclear teria surgido com a Revolução Industrial.
Segundo Chauí, o conceito de família “conjugal, restrita”, que incluiu apenas os pais, filhos e parentes próximos, tem menos de dois séculos. “Isso que entendemos hoje como família foi uma coisa inventada no final do século 18 e começo do século 19.”
A família nuclear, para a filósofa, foi uma “invenção do capitalismo” para possibilitar a transmissão de capital. “Na sociedade da produção industrial, a burguesia precisa da certeza que a transmissão de capital se faz por vias legais e legítimas, para evitar perdê-lo para outras classes sociais.”
Isso é uma completa bobagem. A família nuclear é o padrão mais comum de agrupamento humano desde antes, mas muito antes da Revolução Industrial.
O historiador inglês Peter Laslett, um dos primeiros a usar a estatística e demografia a serviço da história, derrubou em 1965 a ideia que Marilena Chauí defende ainda hoje. Ele mostrou que na Inglaterra do século 13 (quatro séculos antes da Revolução Industrial) famílias nucleares eram o agrupamento predominante, e que era raro até mesmo haver tios, primos ou filhos casados morando na mesma casa da família principal.
Chauí cita a família romana como exemplo de família estendida, que incluiria parentes distantes, propriedades, escravos e a memória dos ancestrais. Pois veja o que disse o historiador Dale Martin num estudo de 20 anos atrás:
Um notável consenso, reconhecido até mesmo por seus críticos, emergiu entre historiadores clássicos, segundo o qual a família regular romana foi uma ‘família nuclear’ assim como a nossa.
O mito da família romana estendida surgiu porque os romanos não tinham um termo específico para “família nuclear”. A palavra “família”, para eles, tinha um significado próximo de “pessoas vivendo sob o mesmo teto”. Mas os romanos se reconheciam por famílias nucleares. Estudos de inscrições funerárias mostraram que, em 80% das epigrafes tanto pagãs quanto cristãs, o autor era filho, um dos pais ou cônjuge do morto, e só raramente um avô, primo ou neto. Como diz outro historiador, “o mito da família romana estendida foi quebrado por demonstração”.
Dá pra ir mais longe. Arqueólogos encontraram na Alemanha ossadas de treze pessoas, todas com o mesmo tipo de ferimentos na cabeça. Foram provavelmente vítimas de um massacre há 4600 anos. Através de análises de DNA, provou-se que, num dos túmulos, pai, mãe e filhos – dois meninos com cerca de 5 e 9 anos – haviam sido enterrados juntos. Se famílias nucleares eram enterradas juntas, é razoável acreditar que também viviam dessa forma.
A família nuclear não é só uma instituição cultural, mas uma adaptação evolutiva. Entre humanos, criar um filho não é fácil. O bebê exige cuidados por mais tempo que outros primatas. Em ambientes hostis como a selva ou a savana, onde passamos a maior parte de nossa história evolutiva, mulheres sozinhas com bebês eram presas vulneráveis demais. Homens que apenas disseminavam seus genes e não investiam no cuidado parental corriam o risco de não deixar descendentes. Estar por perto para arranjar comida e manter as onças afastadas ajudava a garantir a sobrevivência dos filhos.
A história e a biologia da família nuclear não dizem nada sobre a moralidade dessa relação. Não é porque esse arranjo foi comum na história que ele é mais correto ou deve ser uma regra moral dos humanos. Dizer isso seria cair na falácia naturalista, a ideia de que um comportamento é necessariamente melhor porque é natural.
O que essa história diz é que Marilena Chauí precisa se atualizar. E que o grêmio do colégio Oswald precisa escolher melhor seus palestrantes.
@lnarloch