Lá pelo início dos anos 1990, às vésperas de uma missão da Organização Internacional do Trabalho (OIT), aconselharam-me a levar canetas esferográficas Bic para presentear as pessoas que encontrasse. Na viagem, visitei uma linha de montagem da caminhonete Cherokee. Nada que chamasse atenção. Porém, carroças puxadas por burros movimentavam os estoques no pátio. Em um enorme hotel, fui informado de que estavam importando chefs para que ensinassem culinária da China. Sobre essa nação, exclamou o francês André Malraux, nos anos 1960: “Quando esse país despertar…”. E a China despertou.
A Revolução Cultural de Mao destruiu a gastronomia requintada do país, daí importar chefs de Singapura. Um hospital construído em dez dias? Essas são pontas do iceberg das façanhas chinesas. E não param aí as boas surpresas. Que nos façam patéticos figurantes nos surpreende menos que as proezas tecnológicas. Como foi possível esse salto? Na entrada do século XX, canhoneiras americanas patrulhavam o Rio Yangtzé. Embaixadas ocidentais tinham exércitos próprios. Se Mao trouxe ordem, suas políticas desastradas causaram fome que dizimou entre 20 milhões e 45 milhões de almas. Desastre após desastre.
Da tragédia e pobreza extrema, inventa-se uma nação? Como decifrar o salto? E que constrangedor para nós, poupados dessas hecatombes humanitárias. Mas tal comparação ignora a história. A civilização ocidental só desabrochou nos últimos 500 anos. O Brasil começou a se aprumar recentemente, sendo construído por povos de poucas tradições. E a China tem 4 000 anos de história.
“Nosso desafio como nação inclui não sermos inapelavelmente vencidos pelo pessimismo”
O que vemos lá não é a construção de um país, mas sua reconstrução. Como disseram o escritor francês Alain Peyrefitte e tantos outros, durante sua longa trajetória a China esteve à frente da Europa em quase tudo. Apenas no século XIX se desencadeou sua precipitosa decadência — catalisada pela Guerra do Ópio. Um século não apagou o DNA de sua sofisticada civilização, que sempre contou com governantes esclarecidos — selecionados por concursos públicos. A disciplina e a dedicação também vêm de longe. Os chineses não inventam um novo país, apenas voltam à trajetória perdida.
Nós, brasileiros, é que saímos do quase nada. Nós, sim, nos inventamos. Aliás, nosso progresso a partir do fim do século XIX foi fulgurante. Ímpar na história da humanidade. Se ainda estamos engatinhando, é porque começamos lá embaixo.
Nosso desafio como nação inclui não sermos inapelavelmente vencidos pelo pessimismo diante do que não conseguimos realizar. Tampouco nos cabe um ufanismo que atrofia o espírito crítico, sempre necessário. E, naturalmente, falta-nos maturidade para entender que altos e baixos fazem parte da trajetória de qualquer país.
No decorrer de sua longa história, a China foi sacudida por crises medonhas (e agora sacode o mundo). Mas sempre acumulou avanços em múltiplas direções, neutralizando as perdas passageiras. Nisso, não somos nem melhores nem piores. Não há por que imitar a China e, menos ainda, fazer vista grossa a seus pecados. Mas devemos aprender com os chineses o que aprenderam ao longo de 4 000 anos.
Publicado em VEJA de 20 de maio de 2020, edição nº 2687