Portugal é uma terra que faz a minha alma cantar. Eis que, estando em Lisboa para participar de um fórum, sentada numa esquina no Chiado tomando um café, ouço alguém na mesa ao lado dizer que algo “é bom para as tripas”. A frase captada ao acaso me levou a pensar em uma alheira, enchido da culinária lusitana feito de aves, pão, azeite e alho que meu pai, natural da terrinha, adorava. Muito embora, no caso dessa iguaria, as “tripas” é que eram boas para animar o espírito dele. Meu pensamento logo correu do embutido para outra preferência lusa, o grão-de-bico, um bom amigo do sistema digestivo.
Apesar da minha ascendência portuguesa, falar de “tripas” sempre me soou um tanto esquisito. Mas aqui em Portugal é assim que se chamam os intestinos de gente e de bicho. No Brasil, embora não usemos a palavra quando falamos do funcionamento do corpo humano, podemos nos lembrar sem grande esforço de uma expressão bem cotidiana na qual ela aparece: “fazer das tripas coração”. Esse dizer, como se sabe, significa dedicar-se ao máximo e vencer suas próprias limitações para cumprir um objetivo. Mas, se o coração é sabidamente um órgão vital (que os antigos acreditavam ser a sede da coragem), o que tinham as tripas a ver com a capacidade de superar um obstáculo?
“O que é bom para as tripas? O que traz equilíbrio é, ora pois, o que é equilibrado”
A expressão parece nos comunicar, ainda que indiretamente, um preconceito bem injusto quanto ao papel dos nossos intestinos, vistos como menos nobres na manutenção da nossa vida. Em inglês, há uma expressão mais direta que talvez dê ao órgão um lugar mais condizente com sua função. A expressão “to have the guts”, literalmente, “ter intestinos”, é empregada para dizer que alguém é corajoso. Talvez a simplicidade do falar lusitano, ao usar a palavra “tripas” no sentido literal, queira nos lembrar de que não podemos ter esse tabu. Os intestinos, que ocupam espaço tão grande no centro do nosso corpo, não são apenas um amontoado de curvas espaçosas. São a fornalha da nossa máquina vital, operada por um exército de 100 trilhões de microrganismos vivos, a famosa microbiota.
Essas bactérias, fungos, vírus e outros micróbios que moram dentro de nós não são indesejáveis, ao contrário. Desde que mantidos em equilíbrio, funcionam a nosso favor, regulando nosso sistema imunológico. O que é “bom para as tripas” é bom para o corpo de maneira geral, mantendo-nos saudáveis. Alguns cientistas já falam em uma epidemia de doenças relacionadas ao trato intestinal e, apesar de não conseguirem ainda traçar uma linha decisiva sobre o peso da alimentação nisso, não descartam que ele seja tão grande quanto o de fatores genéticos. Então, o que é bom para as tripas? De um lado, os probióticos (que são bactérias vivas) e estão em produtos fermentados, como o iogurte e o missô. De outro, os prebióticos, fibras que nutrem a microbiota. E não é preciso fazer das tripas coração para encontrar essa dupla. Elas estão nos alimentos ricos em fibras, como frutas e verduras. Aspargo e alcachofra, mas também a trivial banana, são ricos em prebióticos. O tão falado ômega-3, encontrado em peixes como a sardinha (de novo Portugal sabe das coisas), é outro elemento benéfico. Uma alimentação variada, com tudo isso aliado a proteínas magras, é boa para as tripas. O que traz equilíbrio é, ora pois, o que é equilibrado.
Publicado em VEJA de 5 de Julho de 2023, edição nº 2848