A Quaresma recém-iniciada é um tempo de reflexão. Neste ano, será um intervalo de quarenta dias entre um Carnaval que não houve e uma Páscoa que as incertezas atuais tornam ainda mais necessária. É um tempo em que somos convidados a pensar sobre o sentido da vida, a perdoar, a afastar o ódio eventual de nossos corações, um tempo para nos voltarmos à família, para exercermos a fraternidade. É especialmente cruel, portanto, que a violência que engolfou a Ucrânia tenha se manifestado como uma triste ironia, justamente neste hiato em que deveríamos estar comemorando a fé na humanidade.
Deixo os aspectos militares da guerra para os especialistas em geopolítica. O que me interessa é o ser humano tragado repentinamente pelo drama, que, sendo coletivo, é também individual, na medida em que se trata da soma de tragédias pessoais. Na reportagem da TV, um pai toca a janela do ônibus que levará a filha pequena a um destino mais seguro, enquanto ele se prepara para resistir. Lá dentro, a menina se despede, fazendo o gesto de quem quer alcançar o inalcançável — a mão protetora. Entre eles, o vidro gelado como um coração desamparado é a metáfora perfeita do poder destrutivo que só o homem, entre todos os animais, é capaz de infligir a seus semelhantes.
“O que me interessa é o ser humano tragado repentinamente pelo drama, individual e coletivo”
Pois esse pai e essa criança deveriam estar em casa, junto a outros membros da família, cuidando de coisas mais importantes — como a confecção de “pêssankas”. Aqui no Brasil muita gente já pintou, e ainda pinta, casca de ovo, sem se dar conta de que essa tradição eslava é tão cara aos ucranianos. Embora a palavra nunca tenha sido acolhida por nossos dicionários, a arte é conhecida. É um artesanato delicado por natureza, a começar pelo suporte físico, pois o ovo pode trincar como um sonho interrompido. Mais importante, no entanto, é a simbologia de vida, prosperidade e saúde encerrada naquela casca colorida e frágil.
As “pêssankas” remetem à gangorra da história do povo da região, que alterna momentos de liberdade e de perseguição. Desde épocas imemoriais, os ovos eslavos pintados eram alimentos da alma, dignos de serem presenteados às mais elevadas divindades. Mais tarde, com o cristianismo, passaram a representar o espírito da Páscoa. Durante o regime comunista, a alegria retratada nas finas cascas foi esmagada sob coturnos ateus e insensíveis. A tradição voltou a florescer após o fim do império soviético e a independência da Ucrânia para ser, agora, mais uma vez ameaçada. Mãos habilidosas de mulheres, que nestes dias deveriam estar dedicadas à produção de “pêssankas”, estão ocupadas demais em fabricar coquetéis molotov, aquelas bombas caseiras incendiárias cujo clarão serve mais para denunciar ao mundo uma agressão do que para deter o poderio dos tanques inimigos.
Quem conhece a tradição diz que as “pêssankas” não são apenas ovos pintados. São também ovos “escritos”, termo que estaria presente em sua origem etimológica. As imagens e as palavras são variadas, mas a mensagem é uma só: a saudação ao renascimento. De Cristo, sim, mas também da vida em geral. Nesta quaresma, uma criança ucraniana a salvo em alguma cidadezinha do interior do país haverá de pintar um ovo que celebrará o renascimento da esperança.
Publicado em VEJA de 9 de março de 2022, edição nº 2779