Os amores líquidos de que nos fala Zygmunt Bauman estão de quarentena. O filósofo polonês fez sucesso com a defesa da ideia de que os tempos modernos favorecem relações pessoais menos duradouras. O amor contemporâneo, na sua observação, estaria mais para o acúmulo de experiências do que para a profundidade de um relacionamento, mais para descompromisso casual do que para vínculo afetivo. O barco dos encontros eventuais, no entanto, está fazendo água, para usar uma imagem próxima ao universo do pensador mais citado do momento, morto há dois anos.
O distanciamento social para combater o coronavírus nos põe cara a cara com nós mesmos. É uma oportunidade de experimentarmos novas possibilidades de trocas de sentimentos com pessoas que, mesmo a distância, talvez estejam vivendo um momento parecido, também com desejo de construir algo que vá além da superficialidade.
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Clique e AssineO impulso de viver um grande amor é contrabalançado, quando se é responsável, pelo receio de contrair a Covid-19. Antes da pandemia, feliz de quem tinha um companheiro com quem pudesse passar o Dia dos Namorados. Hoje, ter um companheiro não garante um jantar romântico (e, para os que puderem desfrutar esse momento, recomendo frugalidade — não vamos perder o foco).
“A ausência temporária pode esfriar as paixões pequenas, mas esquenta os grandes amores”
Nem todos estarão de mãos entrelaçadas, mas isso não é decisivo. Ouço muitos relatos de casais que estão passando a quarentena cada um em seu canto porque um dos dois trabalha com serviços essenciais ou está na linha de frente do combate à doença. Ainda assim, eles se fazem presentes, por meio de mensagens carinhosas, conversas em vídeo ou um buquê de flores por delivery. O que estão fazendo, na realidade, é transformar a ausência física em prova de amor.
Dificuldade maior enfrentam aqueles que a nova ordem mundial pegou num momento em que não dividiam as delícias do amor com ninguém em particular. Mas acredito que obstáculos existem para ser superados. É bonito ver casais se conhecendo por mensagens, construindo confiança mútua e estabelecendo pactos antes de se encontrarem pessoalmente. Começar um namoro virtual não é possibilidade que deva ser descartada. Quando menos, a postergação do contato físico traz uma carga de emoção que pode ser recompensadora tanto no encontro próximo como no futuro mais longínquo, quando a lembrança do platonismo imposto pelas circunstâncias ajudar a alimentar o amor de uma vida inteira.
Gosto de pensar que a ausência temporária pode esfriar as paixões pequenas, mas esquenta os grandes amores. Faz com os sentimentos o que o vento faz com o fogo: se apaga um fósforo, alimenta uma fogueira. No Dia dos Namorados, é bom podermos contar com Vinicius de Moraes. Hoje estamos preocupados com nossa saúde. Sem uma vacina, ainda em desenvolvimento, qual será o impacto no futuro das relações afetivas? O poeta tem a resposta: “Amai, porque nada melhor para a saúde do que um amor correspondido”. E, em meio a tantas agruras descritas em O Dia da Criação, ele registra uma confiança no porvir — “Há um renovar-se de esperanças” — que nos reconforta.
Publicado em VEJA de 17 de junho de 2020, edição nº 2691