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O homem que desconfiou das palavras

Chega ao país tradução inédita do filósofo Fritz Mauthner, pioneiro um tanto esquecido da crítica da linguagem como forma de entender o mundo

Por Diogo Sponchiato Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 17 jul 2024, 14h07 - Publicado em 12 jul 2024, 12h46
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  • A linguagem não é um espelho fiel da realidade, mas precisamos dela para (tentar) compreender o mundo. É nesse beco sem saída que nos coloca Fritz Mauthner (1849-1923), um intelectual judeu, apátrida, cético e profundo conhecedor dos idiomas e suas raízes. Um filósofo que inaugurou a crítica sistemática da linguagem e, hoje um tanto ignorado dentro e fora da academia, finalmente ganha sua primeira edição em terra brasileira.

    Nos textos reunidos em O Avesso das Palavras, publicado pela Editora 34, somos apresentados a um autor que, embora tenha caído no ostracismo entre seus pares, foi reverenciado por luminares da literatura como James Joyce, Samuel Beckett e Jorge Luis Borges. Um sujeito que nos propõe um desafio: não é por que estamos presos nesse beco – o da língua – que não podemos sondar o terreno e aventar saídas, por mais que o resultado delas seja esbarrar no muro que nos separa do real.

    O “ilustre desconhecido” Mauthner escreveu, entre outras obras, dois catataus com mais de 2 mil páginas cada: Contribuições a uma crítica da linguagem e Dicionário de Filosofia. Vêm deles quase todos os excertos e capítulos que formam a coletânea organizada pelo professor Márcio Suzuki, do Departamento de Filosofia da USP.

    Um trecho do texto que encerra o livro, extraído de outro volume do filósofo e intitulado Exposição da minha filosofia, pode servir como carta de intenções e resumo em dose homeopática da visão mauthneriana – convenhamos que só grandes pensadores têm seus sobrenomes convertidos em adjetivos.

    “A linguagem, tal qual a razão, sempre está realmente nos atos de fala e de pensamento individuais; linguagem e razão estão entre os homens, são fenômenos sociais (…) Assim como não conhecemos linguagem filosófica sobre-humana, tampouco conhecemos – se eliminarmos os anseios místicos – uma razão pura. A crítica da razão deve se tornar crítica da linguagem. Toda filosofia crítica é crítica da linguagem.”

    O Avesso das Palavras

    avesso-palavras

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    É isso: para o autor ora traduzido e publicado por aqui, não podemos separar o processo de investigação do conhecimento humano de uma análise da única ferramenta que carregamos para tal empreitada, a língua. E, se quisermos complicar as coisas, basta lembrar que cada indivíduo tem sua própria linguagem (e pensamento) – ah, se as diferenças fossem meramente reduzidas aos idiomas falados entre as nações…

    As ideias de Mauthner são instigantes, daquelas que nos estimulam a sair de uma zona de conforto mental, e prenunciam a noção, mais acolhida atualmente, de que existem outras formas de ler, sentir e entender a natureza – tão múltiplas quanto múltiplos são as espécies e os espécimes com os quais dividimos o planeta.

    O Avesso das Palavras colige textos que estão longe de ser impenetráveis. Com algumas exceções, sobretudo quando se debruça sobre a gramática das línguas, o autor não impõe leitura inacessível. (Bem, nesse sentido, o mérito reside também no trabalho do organizador e dos tradutores da edição brasileira).

    Mauthner caiu no esquecimento, como ensina o professor Suzuki na introdução, após um comentário dentro de um parênteses do titã da filosofia da linguagem Ludwig Wittgenstein – que, por ironia das palavras e do destino, viria a se aproximar do entendimento mauthneriano em sua fase madura.

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    Passou da hora de tirar o precursor das sombras. Com a palavra (afinal, só nos resta recorrer a ela), o organizador do livro. 

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    O professor de filosofia da USP e organizador de “O Avesso das Palavras”, Márcio Suzuki (Foto: Acervo pessoal/Reprodução)

    Fritz Mauthner escreve, nos textos reunidos em O Avesso das Palavras, que a linguagem não é ferramenta adequada para a compreensão da natureza. Mas é nosso único recurso para tentar captar e descrever o mundo. Estamos condenados a uma eterna aporia: a impossibilidade de ler fielmente tudo que nos cerca?

    De fato, o ceticismo dele é radical e bastante original. Vem amparado numa visão pessimista da história e da cultura proveniente de Darwin e Nietzsche, segundo a qual a linguagem foi e continua sendo uma das ferramentas mais eficazes de dominação do homem sobre a natureza. Mesmo que tenhamos consciência de que a linguagem é inteiramente antropocêntrica, uma projeção humana que não nos dá o que as coisas realmente são, não podemos nos libertar desse seu antropomorfismo e continuamos a falar como se estivéssemos falando da realidade.

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    Mauthner foi um dos primeiros a fazer um diagnóstico preciso da ingenuidade que ainda acomete boa parcela da filosofia da linguagem e da linguística contemporânea: acreditar, positivamente, que nossa visão de mundo é dada pela linguagem. O que acontece, na verdade, é que estamos presos, condenados a essa visão de mundo que nos é imposta pela nossa língua – e que não conseguimos nem podemos ver além dela.

    Quando Wittgenstein escreve que os limites da linguagem são os limites do meu mundo, essa frase exprime perfeitamente o pensamento mauthneriano. Inspirado em Mauthner, o poeta Christian Morgenstern, autor do Jogo da Forca, também recentemente publicado, criou toda uma coleção de animais e seres grotescos que se rebelam contra a dominação do homem pela linguagem. E a literatura da não palavra (Unwort) de Samuel Beckett também teve grande influência da crítica mauthneriana e tem muita afinidade com ela.

    Por falar em Wittgenstein, na introdução de O Avesso das Palavras o senhor diz que o filósofo abalou a recepção da obra de Mauthner com uma citação em um parênteses. Em que medida as ideias propostas por esses autores contrastam e convergem?

    O parêntese em que Wittgenstein procura se distanciar da crítica mauthneriana da linguagem se justifica unicamente no contexto da obra Tractatus Logico-Philosophicus, mas se tornou quase sentença de morte. Hoje podemos ver as coisas de modo bem diferente. Certamente há ainda bastante desinformação, mas alguns estudiosos vêm percebendo há algum tempo que o segundo Wittgenstein está muito próximo de Mauthner, por exemplo, na ideia de que a linguagem não tem nenhum valor cognitivo ou ontológico, e de que ela é basicamente pragmática, de que só é eficaz em seu uso.

    Então não é exagero dizer que, quando abdica de seu logicismo inicial, o Wittgenstein maduro chega aonde Mauthner sempre estivera. Mas também se pode identificar semelhanças já mesmo no Tractatus, principalmente no que diz respeito à ética e à mística. O famoso penúltimo aforismo do livro, que diz que é preciso jogar fora a escada depois de ter subido por ela, foi claramente inspirado numa imagem do início das Contribuições à crítica da linguagem de Mauthner. Por outro lado, há efetivamente diferenças substanciais entre os dois filósofos, mesmo quando estão respondendo a problemas parecidos, e penso que é aí que se pode ver que Mauthner não fica nada aquém de Wittgenstein.

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    Que ideia, conceito ou mensagem do autor o senhor julga a mais relevante para o debate contemporâneo?

    O que faz de Mauthner um pensador singular é ter sido um judeu apátrida, é não ter tido uma língua ou uma cultura definida. Com isso, ele pôde ver o papel da língua e da cultura europeia como poucos. Ele admirava Bismarck, de quem gostava de citar a frase: “Quem é a Europa?”. Os políticos europeus acreditam ter uma ideia clara do que seja a Europa, fazem a guerra com a Rússia por uma Ucrânia “europeia”, mas não se fazem a pergunta de Bismarck. Putin concebe toda uma estratégia e leva adiante uma guerra contra o Ocidente em nome da grande Rússia. Macron brande a palavra França a torto e a direito, e agora foi obrigado a entender que a maioria dos franceses não entende a palavra “França” como ele.

    A linguagem nos trai o tempo todo, e Mauthner se comprazia colecionando exemplos de quando nos damos conta tardiamente dessa traição. Ele sugere brincando, por exemplo, a hipótese de que a palavra “socialismo” teria sua origem em acreditarmos que compartilhamos “igualitariamente” de uma mesmíssima língua com todos os outros falantes dessa língua. Mas, como também veio a descobrir Wittgenstein, essa entidade “língua” não existe. E, no entanto, continuamos empregando as palavras Europa, França, Rússia, língua etc., porque não temos outra alternativa. Esse humor lúcido foi um dos motivos que levou Jorge Luis Borges a dizer que Mauthner foi um dos maiores ensaístas da língua alemã.

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