Um livro escrito na primeira metade do século XVI ainda teria o condão de divertir, nos lançando a ataques de riso, fantasia, deboche e autocrítica? Com o carnaval literário de François Rabelais, pode apostar que sim.
A bem da verdade, o leitor brasileiro do século XXI tem um “parça” e tanto para desfrutar desse clássico composto dos ciclos de Gargântua e Pantagruel. O tradutor Guilherme Gontijo Flores.
É ele que está no leme da empreitada responsável por verter ao português destas terras e tempos, e pela primeira vez na íntegra, as Obras Completas de Rabelais, lançadas em três tomos pela Editora 34. É daquelas missões, dadas e cumpridas, que inspiram vertigem: só de pensar no trabalho linguístico e enciclopédico de transpor ao nosso mundo um autor que rompeu com os padrões do idioma, da forma e do conteúdo.
O polímata francês (1483?-1553) é daqueles escritores incontornáveis cujo nome virou adjetivo (“rabelaisiano” é alguém sarcástico) e cujos personagens seguiram os passos do criador, dando origem aos termos “pantagruélico” e “gargantuesco”. Todas essas palavras ressoam às criações monstruosas, desbundadas e hilárias do francês.
Gargântua e Pantagruel, pai e filho gigantes e senhores de um reino, protagonizam a sequência de livros, que também trazem as aventuras de outros personagens impagáveis, como frei João do Picadinho e Panurgo. A graça dos seus feitos e desfeitos vem à tona em episódios iconoclastas e escatológicos (no sentido mais carnal mesmo), nas invenções de palavras, nas críticas aos cabeças da religião e da universidade, nas piadas e nos jogos de linguagem.
Algo que só saboreamos, em risos contidos ou desbragados, com a tradução de Gontijo Flores. Fazendo jus à miscelânea de Rabelais, o escritor e professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR) ora atualiza termos e expressões – “saquei”, “de boa”, “top”, “pedro de lara-lá-lá-lá” – ora recorre a usos d’antanho. Fora as mil e umas referências aos clássicos antigos, à Bíblia e a histórias, figuras e costumes da época, que temos a chance de captar com as suas notas introdutórias.
Tudo junto e misturado – com direito ao acompanhamento das ilustrações de Gustave Doré -, são livros incríveis e divertidíssimos, pura farra que mistura corpos, conhecimentos e dicionários.
Com a palavra, o tradutor.
Nas Obras Completas de Rabelais, basta ler as notas explicativas dos capítulos para ter um vislumbre do trabalho envolvido nessa tradução enciclopédica. Qual foi o maior desafio?
Foram vários desafios, ao longo dos anos de tradução e revisão, porque a obra é de uma vida inteira (a vida do Rabelais, é claro; mas também poderia exigir toda uma vida de tradução). Olhando agora para o percurso em retrospecto, eu desconfio que o maior desafio, ao fim e ao cabo, foi uma tarefa dupla. De um lado, recriar a força de uma trajetória do próprio Rabelais como pensador e escritor, que foi mudando ao longo do tempo; portanto, sem criar uma linguagem única para toda a obra no Brasil, o que acabaria por simplificar as mil sutilezas e complexidades.
Embutido nisso, está o outro lado, que era apostar de modo radical na chance de fazer essa linguagem múltipla acontecer anacronicamente, dentro das possibilidades do português brasileiro de hoje. Ou trocando em miúdos: o desafio maior foi criar, com a linguagem de agora, um percurso paralelo das facetas rabelaisianas, do riso à erudição, do chulo ao técnico etc., sem perder algum sentido de unidade. Posso dizer que me entreguei inteiro a essa aventura, sem saber quanto sucesso ela teria, e sem saber ainda hoje.
Ao verter os livros para o português e o contexto do século 21, você atualiza diversas expressões, jogos de linguagem e piadas. Em outros momentos, preserva o registro mais formal e de acordo com os tempos de então. Como balizou essas decisões?
Fiz uma aposta deliberada no anacronismo como chance de produzir literatura muito viva – e agora. Quer dizer, Rabelais misturava dialetos, registros, línguas, humores, modos de ser e de escrever, numa mesma frase, sem pestanejar, e desdobrava isso em vertigens ao longo de obras e obras. Eu poderia tentar fazer algo mais historicamente plausível, pesquisando o português de época; ou poderia, inversamente, tentar atualizar tudo. Foram duas ideias que me passaram pela cabeça.
No primeiro caso, penso que eu perderia a farra da linguagem, porque, pra gente rir de verdade, é preciso ter sabor, e o sabor só se dá com quem saboreia a linguagem dos vivos, para lhe insuflar ainda mais vida. No segundo, eu perderia o fato de que uma obra dessas só poderia ser concebida por uma grande cabeça do Renascimento, porque ela é o seu próprio período, com tudo que há de contraditório, inacabado, incompreensível.
Então optei pelo caminho mais difícil, como não poderia deixar de ser: fazer opostos ao mesmo tempo, e ver no que dava a mistureba. No fundo, me pareceu o ato mais justo com meu próprio tempo e com o mistério-Rabelais que ainda me fascina: deixar os dois assim, coladinhos.
Rabelais mostra que o riso pode ser ingrediente da alta literatura e um antídoto para as agruras sociais, certo? Em que medida sua proposta permanece conversando com a nossa realidade? Aproveitando: você enxerga herdeiros de Rabelais na literatura contemporânea?
Não sei se o riso chega a ser um antídoto de fato; mas o riso desbragado, descomedido, pode ser, por um instante ínfimo, uma espécie de salvação. Penso, mais ainda (e, nesse aspecto, bem longe da ciência moderna ou dos novos fanatismos), que o riso tem um valor paralógico de fertilização do mundo. E nisso vejo um paganismo em Rabelais, que convive com o religioso cristão e com o nascimento do cientificismo. Uma enorme gargalhada, diante do disparate de tudo, vitaliza o mundo, pura e simplesmente. Mas depois, talvez infelizmente, precisamos voltar aos desafios concretos: guerra, fome, dor. Só que, sem a gargalhada, sem um tempo para ela, é difícil demais construir mundos.
Se, no que eu acabei de dizer, eu não estiver delirando, ou redondamente enganado, então Rabelais tem tudo a ver com a nossa realidade. Porque os desafios concretos não diminuíram em nada, e o mundo continua precisando desse adubo bruto da risada, sem ingenuidades, sem falsas esperanças. E isso está lá, pra gente aprender: o próprio Rabelais foi a um só tempo clérigo, médico, apóstata, pai, espião político, escritor… Nós também nunca poderemos ser uma coisa só.
Por fim, as heranças… Bom, na minha cabeça, o herdeiro maior de Rabelais entre os vivos é o norte-americano Thomas Pynchon, que também considero um escritor enorme, agregador do impossível no seu próprio tempo, porque encara história e delírio numa só tacada, e me faz pular da gargalhada ao pranto numas poucas palavras, entre horror e piração gratuita.
No entanto, a obra rabelaisiana aparece em mais gente. No Brasil, eu a encontro em pontos maravilhosos, como no humor violento da Elvira Vigna, nos delírios pornográficos do Reinaldo Moraes, na linguagem de rua do André Sant’Anna, na espetacular encruzilhada cultural do Mar Paraguayo do Wilson Bueno, entre outros.
Talvez a gente só precise mesmo redescobrir que os clássicos sempre foram experimentais, para que isso nos dê um olho muito vivo no contemporâneo.