Confesso que sobrevivi: Tolstói, suicídio e redenção
A bordo do trem que vai de Kazan a Saransk, na Rússia
A 10 km do centro de Kazan (se tanto), chego ao Templo de Todas as Religiões: trata-se de um complexo (passando por múltiplas reformas) que contém duas igrejas – uma ortodoxa, outra católica –, uma mesquita, uma sinagoga e um centro animista que retoma práticas religiosas antiquíssimas em meio aos tártaros.
As cruzes católicas e ortodoxas, a estrela de Davi e a lua islâmica coexistem sobre bulbos e tetos policromáticos, como se cada uma dessas tradições não quisesse tomar para si a primazia do céu.
Súbito, deparo com um velho careca e de barba desgrenhada vestindo uma túnica preta e puída que lhe chega aos calcanhares. Seus olhos bem azuis e estreitos como frestas só não se mostram mais vivazes que seus punhos em riste: o velho fala com ímpeto e vigor – ao redor do pregador grisalho, dezenas de pessoas o ouvem com um silêncio extático de árvores perfiladas em um bosque.
Com a mão direita, sobre cujo dorso despontam nódoas marrons e veias intumescidas, o velho só faz brandir uma pequena obra autobiográfica do escritor russo Liev Tolstói (1828-1910): Uma confissão (1879). Como se trata de um livro de minha inteira predileção, aprumo os ouvidos para escutar a pregação do velho, que se posta de maneira equidistante em relação a todos e a cada um dos centros religiosos.
– Assim falou Liev Nikoláievitch Tolstói: “O que vai ser daquilo que faço hoje e daquilo que vou fazer amanhã
– o que vai ser de toda a minha vida? Para que devo viver, para que fazer algo? Existe, em minha vida, algum sentido que não seria aniquilado pela morte inevitável?” Tais perguntas existencialmente inescapáveis estão no coração de Uma confissão. (O velho pregador agita a obra em direção a seus ouvintes com entusiasmo.)
– Acossado pelo espectro do suicídio, o consagrado autor de Guerra e paz e Anna Kariênina reconfigura o dilema de Hamlet: se quem muito pensa sobre a vida cedo ou tarde depara com a morte, ser e não ser, para Liev Nikoláievitch Tolstói, não podem transformar as respostas em lápides.
– Aristocrata riquíssimo, Liev Nikoláievitch Tolstói já fizera uma crítica radical à sua classe social, ao chamar a todos (e, sobretudo, a si mesmo) de parasitas que, apartados da busca pelo sentido da vida, só faziam chafurdar na luxúria que o privilégio da exploração alheia lhes permitia.
– Autor consagrado internacionalmente – a vida do conde/escritor era rastreada por jornalistas ávidos por indiscrições e escândalos (eis os avós dos atuais paparazzi) –, Liev Nikoláievitch Tolstói já fizera uma (auto)crítica radical aos escritores que, sempre envolvidos em querelas e escaramuças, só faziam jactar-se pelo apreço do público e, assim, desviavam-se das questões últimas da existência e reduziam a literatura a uma forma sofisticada de ludibrio.
– É assim que, em meio a uma torrente tão profunda quanto rara de autocrítica, abnegação e lucidez, as confissões de Liev Nikoláievitch Tolstói recorrem a um conto oriental para tentar desvelar o sentido da vida a ser ceifada pela morte.
– Imaginemos um viajante que, enquanto cruza a estepe, se vê perseguido por um animal feroz. Para se salvar da fera, o viajante pula em um poço seco, ao fundo do qual há um dragão ávido para devorá-lo. Para evitar a morte certa, o viajante se agarra aos ramos de um arbusto silvestre que lograra crescer através das fissuras do poço. Ocorre que suas mãos começam a ceder, e o viajante sente que logo precisará se entregar para a morte, já que o animal feroz lhe barra a saída, e o dragão faminto lhe veda o abrigo ao fundo do poço. (Para este conto oriental, chegar ao fundo do poço é, de fato, uma noção para otimistas.)
– E eis que o viajante, ao olhar para os lados, vê um rato branco (o dia) e um rato preto (a noite) perambulando junto ao arbusto – o frágil galho que sustenta o viajante vai sendo roído pelos ratos do tempo.
– Ocorre que, em meio às folhas do arbusto, o viajante descobre uma gota de mel e passa a lambê-la com sofreguidão, como se a ilusão do prazer fugaz pudesse ludibriar a morte certa. É quando Liev Nikoláievitch Tolstói arremata o conto oriental: “Porque vejo com clareza o dragão, o mel já não me traz doçura. Vejo só uma coisa – o dragão inevitável e os ratos – e não consigo desviar meus olhos. E isso não é uma lenda, isso é a verdade, inquestionável e entendida por todos”.
– Mas eis que Liev Nikoláievitch Tolstói, inquieto e inquisitivo por excelência, nos envolve em um novo turbilhão de perguntas: ora, se a consciência da morte (ou pior, a consciência para a morte) aniquila o sentido racional da vida; se, como quer o sumo pessimismo do filósofo alemão Arthur Schopenhauer, o nada anterior à existência teria sido preferível à vida, de modo que o retorno ao nada, com a morte, seria o único bem em meio a uma vida repleta de choro e ranger de dentes; se, em suma, o suicídio é a única ação racional para uma vida desprovida de qualquer sentido, como é que a humanidade, desde sempre acossada pelo espectro da morte, ainda não se aniquilou? Como é que os homens e mulheres, desde tempos imemoriais, vêm logrando viver sem se suicidar?
– É quando Liev Nikoláievitch Tolstói, alçando-se para além do inferno suicida, descobre o caráter quintessencial – a bem dizer, ontológico – da fé. A fé, Liev Nikoláievitch Tolstói nos confessa, “não é apenas o ‘desvelamento de coisas invisíveis’, não é só a relação do homem com Deus – a fé é o sentido da vida humana, graças ao qual o homem não se destrói e vive. Se o homem vive, ele acredita em alguma coisa. Se não acreditasse que é preciso viver para alguma coisa, ele não viveria”. Para Liev Nikoláievitch Tolstói, a fé não move montanhas – a fé nos faz escalá-las. A fé no sentido para além da morte, a fé em que a morte é uma transição, a fé na eternidade.
– Ora, como Schopenhauer não se matou, Liev Nikoláievitch Tolstói bem poderia dizer que a publicação de O mundo como vontade e representação, obra magna do filósofo alemão, foi um ato de fé. Para além da floresta negra de seu pessimismo, Schopenhauer afirmou a vida com o ímpeto que o fez erigir sua obra. Assim, as confissões de Liev Nikoláievitch Tolstói insinuam que Schopenhauer não poderia sentenciar que não teve filhos e que não transmitiu a nenhuma criatura o legado de nossa miséria.
Flávio Ricardo Vassoler, escritor e professor, é doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (EUA). É autor das obras O evangelho segundo Talião (nVersos, 2013), Tiro de misericórdia (nVersos, 2014) e Dostoiévski e a dialética: Fetichismo da forma, utopia como conteúdo (Hedra, 2018), além de ter organizado o livro de ensaios Fiódor Dostoiévski e Ingmar Bergman: O niilismo da modernidade (Intermeios, 2012) e, ao lado de Alexandre Rosa e Ieda Lebensztayn, o livro Pai contra mãe e outros contos (Hedra, 2018), de Machado de Assis. Página na internet: Portal Heráclito, https://www.portalheraclito.com.br.