Vladimir Maiakóvski, a revolução que atira contra o (próprio) peito
O suicídio do escritor, aos 36 anos, também pode ser compreendido à luz do autoritarismo contrarrevolucionário da União Soviética sob o punho de Stálin
Com traduções e ensaios de Augusto (1931 – ) e Haroldo de Campos (1929-2003) e Boris Schnaiderman (1917-2016), o livro Poemas (Editora Perspectiva) nos traz uma antologia da obra do russo Vladimir Maiakóvski (1893-1930) como um panorama pré e pós-revolucionário de sua poesia.
Para Boris Schnaiderman, “a evolução de formas e as mudanças de visada são apenas múltiplos aspectos da mesma realidade poética. O Maiakóvski futurista [pré-revolucionário], que usava blusa amarela, é o mesmo poeta da Revolução [de 1917], consciente e desafiador, assim como os poemas que escreveu nas vésperas da morte [Maiakóvski se suicidou com um tiro no peito] trazem a marca dos mesmos procedimentos poéticos, altamente elaborados, que pôs em prática a partir de 1912”.
O livro tem início com o poema “A Vladimir Maiakóvski” (1921), de autoria da poeta Marina Tzvietaieva (1892-1941), para quem
“Ele é dois: a lei e a exceção,
Ele é dois: cavalo e cavaleiro”.
Se, para a criação da arte revolucionária, forma e conteúdo politicamente revolucionários também precisam ser artisticamente radicais, o poeta da revolução e o poeta revolucionário têm que se fundir em uma única e mesma pessoa. Para Tzvietaieva, essas duas entidades encontraram-se apenas uma vez no centauro Maiakóvski – “Ele é dois: cavalo e cavaleiro” –, “pois ele é um revolucionário poeta, o milagre de nossos dias”.
É assim que, “De Rua em Rua” (1913), o eu-lírico iconoclasta e fortemente imagético de Maiakóvski anseia que os “Cisnes de pescoços-campanários” das catedrais se torçam (e/ou se asfixiem) “nos fios do telégrafo”.
Desde o título-desafio “Algum Dia Você Poderia?” (1913), o poeta nos intima a ler e auscultar, entre as
“escamas de um peixe de estanho,
lábios novos chamando”.
E quando é que depararíamos com “Algo em [São] Petersburgo” (1913) como “mamilos de granito” (intumescidos, poeta?) ou “o camelo de duas corcovas do rio Neva” sem a mediação de Maiakóvski?
O olhar do eu-lírico parece extrair e embaralhar a ontologia das coisas de modo a transmutá-la(s) com a alquimia de seus poemas-experimento. Assim, como se o poeta capturasse a nervura do mundo com uma câmera na mão – vale lembrar que o polivalente Maiakóvski também escreveu roteiros para filmes –, o enquadramento de seu olhar, “No Automóvel” (1913) em movimento, nos revela que
“A cidade desatarrachou de súbito.
Os anúncios boquiabriam-se de susto”.
Maiakóvski nos incita a resgatar nosso coração da “jaula do tórax” (“Jubileu”, 1924) – o carcereiro será hipnotizado por versos entoados pela “flauta de minhas próprias vértebras” (“A Flauta-Vértebra”, 1915).
Em meio à carnificina da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), Maiakóvski dá uma forte bofetada no público burguês do cabaré artístico “O Cão Vadio” ao recitar/disparar um de seus mais virulentos poemas-desafio – “A Vocês!” (1915):
“Sabem vocês, inúteis, diletantes
Que só pensam encher a pança e o cofre,
Que talvez uma bomba neste instante
Arranca as pernas ao tenente Pietrov?…”
Boris Schnaiderman nos conta que “aquela bofetada no público burguês, ao qual se lembrava a imoralidade de sua vida boêmia, no momento em que o soldado russo morria nas frentes de combate, provocou indignação geral entre os frequentadores do cabaré. ‘O Cão Vadio’ por pouco não foi fechado, por causa daquela noite de poesia”.
A profunda irradiação de Maiakóvski pelo imaginário de sua época fez com que, em meio à Revolução de Outubro, os marinheiros que investiam contra o Palácio de Inverno do czar, em São Petersburgo, cantassem os versos do poema de luta “Come Ananás” (1917):
“Come ananás, mastiga perdiz.
Teu dia está prestes, burguês”.
Entretanto, o forte apelo político da obra de Maiakóvski – uma obra que entretecia as esferas subjetiva e histórica – não a converteu em um mero panfleto. Em contraposição aos burocratas partidários que consideravam sua poesia hermética e elitista, Maiakóvski se apropria da crítica limitada e a ressignifica em um poema “Incompreensível para as Massas” (1927):
“Chega
de chuchotar
versos para os pobres.
A classe condutora,
também ela pode
compreender a arte.
Logo,
que se eleve
a cultura do povo!
Uma só,
para todos.
O livro bom
é claro
e necessário
a mim,
a vocês,
ao camponês”.
Em uma época que levou artistas a declinar da autoria de suas obras – o ímpeto revolucionário teria parido a miríade de criações –, o suicídio de Maiakóvski, aos 36 anos, também pode ser compreendido à luz do autoritarismo contrarrevolucionário da União Soviética sob o punho de Stálin. Afinal, em um poema premonitório de 1926 em homenagem ao poeta Sierguéi Iessiênin (1895-1925), que se suicidara, Maiakóvski sentencia:
“É preciso
arrancar alegria
ao futuro.
Nesta vida
morrer não é difícil.
O difícil
é a vida e seu ofício”.
Flávio Ricardo Vassoler, escritor e professor, é doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (EUA). É autor das obras O evangelho segundo Talião (nVersos, 2013), Tiro de misericórdia (nVersos, 2014) e Dostoiévski e a dialética: Fetichismo da forma, utopia como conteúdo (Hedra, 2018), além de ter organizado o livro de ensaios Fiódor Dostoiévski e Ingmar Bergman: O niilismo da modernidade (Intermeios, 2012) e, ao lado de Alexandre Rosa e Ieda Lebensztayn, o livro Pai contra mãe e outros contos (Hedra, 2018), de Machado de Assis. Página na internet: Portal Heráclito, https://www.portalheraclito.com.br.