A ideia de que Jair Bolsonaro pode desistir de tentar a reeleição não saiu da cabeça de nenhum oposicionista signatário dos inúmeros pedidos de impeachment ora postos em sossego sob o derrière do presidente da Câmara, Arthur Lira.
Quem levantou a lebre foi o presidente. Não pode reclamar, portanto, se o assunto vier a tomar conta das mentes e das bocas Brasil afora. “Mas não é que pode ser uma boa?”, arrisca-se Bolsonaro a começar a ouvir daqui em diante.
É claro que essa não foi a intenção dele. Tampouco se tratou de um descuido. A hipótese foi aventada ao jogar a toalha e admitir a impossibilidade de o Congresso aprovar a reintrodução do voto impresso no sistema eleitoral. Mas podemos ir além.
Quais seriam as razões do presidente? Vejo duas. Estimular sua militância a embarcar numa espécie de “queremismo” revisitado inspirado em Getúlio Vargas para tentar conter o derretimento da densidade eleitoral é uma. A outra, se não der certo a primeira e as condições de competitividade descerem a ladeira a ponto de tornar a derrota inevitável, antecipar-se ao desastre saindo do jogo como se o fizesse por vontade e não por imposição das circunstâncias adversas.
A conjuntura lá na frente pode não ser a de hoje. Mas, na conta das probabilidades, tende a ser pior. Ainda mais se a comparação for com o cenário de 2018 e mesmo com a situação antes de a pandemia conferir a Jair Bolsonaro a medalha de ouro num hipotético pódio de maus governantes.
Hoje ele já não pode cometer barbaridades tais como nomear o filho embaixador nos Estados Unidos, insultar a mulher do presidente francês, fazer troça da China, recusar-se a comprar essa ou aquela vacina, dar aval a pregações pelo fechamento do Supremo Tribunal Federal, bradar coisas do tipo “agora chega” ou “acabou, p…” e por aí vai. Surpreendente é que um dia tenha podido, mas não pode mais.
Steven Levitsky e Daniel Ziblatt ensinam em Como as Democracias Morrem que os dois pilares de sustentação das “grades de proteção” dos estados de plenos direitos são a tolerância e a reserva institucional (noção de limites no exercício do poder).
“A ofensiva autoritária levou o país a acordar para questões adormecidas que havia muito precisavam ser enfrentadas”
A tolerância é diária e constantemente agredida pelo sectarismo extremo dos adeptos da crença de que adversários devem ser aniquilados. A reserva institucional é afrontada pela ausência de comedimento de Bolsonaro na cadeira presidencial.
Quando o país simpatiza com a figura de um governante, tende a tolerar a testagem de limites. Lula, por exemplo. Quis acabar com a autonomia das agências reguladoras, tentou controlar a imprensa, reclamou das amarras dos órgãos de fiscalização (do meio ambiente, inclusive), desdenhou da oposição, calou enquanto petistas qualificavam o STF como “tribunal de exceção” e introduziu na vida nacional a dinâmica do “nós contra eles”.
Plantou a semente. Bolsonaro, contudo, cultivou o campo na base do maquinário tão pesado quanto obsoleto e se deu mal. Por falta de organicidade partidária, de identificação popular, excessivo e descontrolado ressentimento, uso primário dos instrumentos de distração, vocação à crueldade, personalidade desagregadora e déficit no quesito olfato político. Lula é o contrário disso tudo e, por amado, foi tratado com indulgência.
Também diferentemente do petista, Jair Bolsonaro, eleito por exclusão, já tomou posse altamente rejeitado. Além de não ter trabalhado para mudar essa condição, só fez aprofundar e ampliar a desaprovação. A presença dele na Presidência tem sido um transtorno, é fato. Mas é verdade também que às ações malfazejas têm correspondido reações benfazejas. Questões que estavam adormecidas começaram a ser enfrentadas.
A exorbitante presença de militares no governo resultou no apoio praticamente unânime à emenda que restringe a presença das fardas em cargos de natureza civil. O uso abusivo da Lei de Segurança Nacional pôs para andar a reformulação desse entulho autoritário.
A insistência de Bolsonaro no voto impresso — até outro dia defendido por gente equivocada, mas de boa-fé — consolidou a aprovação ao sistema eletrônico. E até o poder monocrático do presidente da Câmara, sem data-limite para o exame de pedidos de impeachment, já é objeto de um projeto de resolução em tramitação na Casa.
É assim que sociedades de firmes convicções democráticas aplicam dribles em governantes de fortes tendências autoritárias.
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Publicado em VEJA de 28 de julho de 2021, edição nº 2748