A necessidade de uma alteração radical na qualidade e na quantidade do sistema partidário brasileiro é daquelas unanimidades sobre as quais muito se fala e nada se faz. Todas as ditas reformas políticas ensaiadas de 1997 para cá, lá se vão 25 anos, foram feitas na base do quanto mais se muda, mais fica tudo como está.
O ex-senador Jorge Bornhausen quando presidente do PFL (atual DEM, em via de incorporação ao União Brasil) dizia que a reforma política real e necessária não sairia nunca porque era tarefa dos políticos, resistentes a mudar as regras pelas quais eram eleitos. Muito se tentou, mas pouco se conseguiu.
Houve algumas modificações pontuais, boa parte delas derrubada ou reformulada por decisões da Justiça e/ou por ação do próprio Congresso. Suas altezas têm por hábito alterar normas a cada eleição. Sempre com o cuidado de não tocar em questões de fundo como voto obrigatório x facultativo, presidencialismo x parlamentarismo e sistema majoritário x distrital.
O ex-presidente Luiz Inácio da Silva faz agora movimentos que de início parecem direcionados apenas à montagem da candidatura e campanha presidenciais, mas, se examinados na perspectiva de ideias já defendidas por Lula, podem ter um alcance mais ambicioso.
Logo nos primeiros dois anos de seu primeiro mandato no Planalto ele difundiu a tese de que o Brasil estava destinado a ter dois, no máximo três, partidos fortes. Depois Lula abandonou o assunto, mas aquilo ficou ali, intocado numa prateleira da história.
A história agora me volta à mente, inclusive porque estava presente numa dessas ocasiões em que Lula discorreu longa e veementemente sobre o tema. Dizia até que, naquele cenário por ele presumido, PT e PSDB tenderiam a caminhar juntos. Diante da surpresa geral, amenizou e fez a seguinte emenda: não falava de fusão entre as duas legendas, e sim da união entre “alguns” petistas com “alguns” tucanos.
Não soa familiar aos leitores atentos ao noticiário político-eleitoral que registra dia a dia o vivo interesse de Lula na companhia dos tucanos hoje visivelmente desconfortáveis num PSDB que já não é mais aquele da fundação e dos tempos de poder?
“Lula atrai tucanos para uma antiga ideia dele sobre volta do bipartidarismo no país”
O ex-presidente posa para fotos e pede reuniões com o antecessor e, segundo ele, artífice da “herança maldita”, Fernando Henrique Cardoso. Faz encontros com o senador Tasso Jereissati, procura o ex-ministro Aloysio Nunes Ferreira, lança convites a Arthur Virgílio Neto — um dos mais duros opositores aos governos do PT quando no Senado — e, no lance mais midiático da temporada, propõe ao antigo oponente Geraldo Alckmin dividir agora com ele a chapa presidencial.
Catedrático na arte de não dar ponto sem nó, Lula faz tudo isso em público. Dispensa o lusco-fusco dos bastidores para exibir sob as luzes do palco sua capacidade de farejar a chance de açambarcar o espólio do tucanato, valioso do ponto de vista simbólico, embora possa estar em baixa no quesito conquista de votos.
O petista ainda não obteve da velha guarda do PSDB nada muito além de fotografias e manifestações um tanto constrangidas de apreço aos gestos (ensaiados) de desprendimento. Mas já conseguiu tirar do caminho um forte concorrente ao governo de São Paulo ao patrocinar um voo da mosca azul ao redor da cabeça de Alckmin.
O petista que já mordeu agora assopra os velhos e tradicionais adversários valendo-se da fragilidade, da insatisfação e da ausência de unidade reinante no ninho. Vai cevando vaidades, comendo o mingau pelas beiradas de maneira paciente e dissimulada.
Se alguns dos alvos da sedução acreditam que Luiz Inácio da Silva pretenda mesmo lhes abrir espaços de poder real caso volte à Presidência, recomendo que apurem os ouvidos para escutar o que os petistas defensores desse experimento ao molde de aliança dizem atrás das portas sob a garantia do anonimato.
No PT, forasteiro não é parceiro. É servidor de quem se espera obediência aos ditames do rei. O mesmo conceito aplicado aos ainda potenciais aliados quando Lula foi eleito sem maioria no Congresso, precisou deles para governar, depois se esforçou para os descartar, mas pagou o preço na denúncia do mensalão e mais à frente um impeachment.
Isso porque Roberto Jefferson, MDB, Centrão e companhia tinham sustentação partidária forte. Não é o caso dos atordoados tucanos, em fase de completa dispersão.
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Publicado em VEJA de 2 de fevereiro de 2022, edição nº 2774