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Prevenir é preciso

Se Bolsonaro planeja mesmo anular a eleição, é essencial sabermos desde já qual é o plano

Por Dora Kramer Atualizado em 4 jun 2024, 12h04 - Publicado em 6 Maio 2022, 06h00

Por mais que o presidente da República ameace invalidar o resultado das eleições caso seja derrotado, vamos combinar: é tarefa de difícil execução. Mais fácil falar do que fazer. O mero vociferar não terá o poder de anular o processo cujo transcurso atrairá os olhos do mundo para o destino da democracia brasileira e no qual estarão envolvidos milhares de candidatos e milhões de eleitores.

Para levar a cabo tal projeto, Jair Bolsonaro precisaria de cúmplices na estrutura do Estado. Coisa de peso institucional, nada a ver com gritarias de internet ou arruaças. Teria de contar com uma Justiça (Eleitoral, mas não só) acovardada, um Legislativo suicida decidido a tornar inválidos os mandatos conquistados por governadores, deputados — estaduais, inclusive — e senadores, além de Forças Armadas dispostas a cumprir ordens de empastelamento geral.

Algum desses atores iria ou poderia se habilitar a cumprir semelhantes papéis? Não nos parece crível, dadas as reiteradas manifestações de repúdio aos avanços de Bolsonaro nessa seara por parte do Judiciário e do Congresso.

Resta aos militares encontrar um modo incisivo, sem se desviar do preceito da hierarquia, de demonstrar que a disciplina não inclui obediência a comandos fora da Constituição. Perderam essa oportunidade quando calaram ante a proposta do presidente de levá-los a fazer uma apuração paralela “em computador” fardado.

Talvez tenham considerado melhor não comprar uma briga inútil, tal o caráter absurdo da sugestão. Não cabe ao chefe do Executivo, muito menos está incluída entre suas atribuições de comandante das Forças Armadas decisões sobre o processo eleitoral estabelecido em lei pelo Congresso e cujo rito do início ao fim está sob escrutínio da Justiça.

“Se Bolsonaro planeja mesmo anular a eleição, é essencial sabermos desde já qual é o plano”

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Qualquer atuação fora desses limites equivale a um golpe de consequências desastrosas em âmbito global. E, aqui, mais um obstáculo às ousadias presidenciais: tanto barulho Bolsonaro fez em torno desse assunto que atraiu a atenção do mundo para as eleições brasileiras que estarão sob estreita vigilância como nunca estiveram.

Além disso, as ameaças e contestações à confiabilidade das urnas eletrônicas foram tantas que acabaram suscitando a adoção de novas ferramentas de segurança e transparência. Contribuíram justamente para desmontar as suspeições de Bolsonaro.

Mesmo os questionamentos feitos pelos militares podem acabar servindo como uma espécie de manual sobre a lisura do sistema, tal a assertividade e o detalhamento das respostas dadas pelo Tribunal Superior Eleitoral. Não deixam margem a dúvidas.

A ausência de condições objetivas para o golpe significa que podemos dizer tranquilos que não vai ter golpe? Infelizmente, tranquilidade é matéria-prima que não podemos nos dar ao luxo de consumir. Como disse o poeta Robert Frost, há léguas a percorrer antes de dormir.

Urge, portanto, não desprezar as intenções de Jair Bolsonaro. Fundamental descobrir o que ele exatamente tem em mente, com quem poderia contar, saber qual é o plano para que o país possa se precaver e, se for mesmo o caso, reagir adequadamente e de maneira eficaz. Numa frase, prevenir é preciso. No sentido da necessidade e da exatidão.

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Pode ser que as recentes conversas entre os chefes dos poderes Legislativo e Judiciário tenham abordado essa necessidade de detectar a trilha golpista do presidente, mas nada nesse sentido transpirou. Se por questão tática, o.k., mas, se por indiferença ao tema, conviria corrigir o rumo da prosa. Incluir nela os órgãos de controle e fiscalização, os políticos, os partidos e os pretendentes a candidatos em defesa não desse ou daquele nome, mas para construir união em favor da normalidade, de olho vivo e faro fino nos preparativos presidenciais para as vésperas e para o período pós-eleitoral. Tal engajamento requer abertura de espíritos, consciência de que a defesa da democracia não é propriedade de uma candidatura e atenção ao risco real.

O perigo pode até não ser o de uma ruptura clássica para instituir uma ditadura. Mas urge evitar também a normalização da anomalia, a fim de que não nos acostumemos ao quentinho da lama das relações institucionais deterioradas em estado de derretimento. Caminho certo na direção de irreversível morte morrida do estado de direito.

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 11 de maio de 2022, edição nº 2788

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