Na falta de vontade e de coragem para fazer uma reforma no sistema eleitoral/partidário que contribua de fato para a evolução dos meios e modos da política no Brasil, suas altezas congressistas inventam modas inúteis, como essa última das federações partidárias.
De modo geral, as invenções levam a lugar nenhum e costumam ser revogadas por incompatibilidade com o mundo real ainda referido no atraso. Cito dois casos. Um deles é a chamada regra da verticalização, pela qual os partidos eram obrigados a fazer alianças iguais nos âmbitos estaduais e nacional.
Essa norma foi instituída pelo Tribunal Superior Eleitoral em 2002 a partir de uma consulta do PDT sobre o “caráter nacional” das legendas consignado com clareza na Constituição. Pois bem. Valeu para a eleição de 2006 e foi derrubada naquele mesmo ano por emenda constitucional aprovada pelo Congresso que estabeleceu o fim da verticalização a partir de 2010.
A ideia era dar uma organizada na barafunda de alianças ideologicamente incongruentes país afora. Na prática, reduziu o número de coligações, mas não influiu no resultado nem organizou coisa alguma. Três presidentes foram reeleitos independentemente da regra.
Luiz Inácio da Silva teve o apoio de 421 prefeitos em 2006, sob a obrigatoriedade de alianças uniformes, enquanto Fernando Henrique Cardoso e Dilma Rousseff contaram, respectivamente, com 2 960 e 2 930 prefeitos quando disputaram um segundo mandato em 1998 e 2014 em sistema de coligações liberadas. Moral da história: o poder de atração do Planalto valeu mais que qualquer boa intenção de impor artificialmente disciplina ao indisciplinado quadro partidário.
Outro caso de inutilidade foi a decisão tomada em 2007 pelo Supremo Tribunal Federal em provocação feita pelo PPS (hoje Cidadania), DEM (então PFL) e PSDB, segundo a qual os mandatos legislativos pertencem aos partidos, e não aos deputados, senadores e prefeitos. A medida foi vista como “histórica”, a pá de cal na infidelidade partidária.
“Federação foi a moda inventada pelo Congresso, mais uma, para fugir da reforma política”
Pois bem, nove anos depois, uma emenda constitucional aprovada pelo Congresso criou a dita janela partidária; um período de trinta dias em todo ano eleitoral (seis meses antes do pleito) em que os parlamentares têm autorização para transgredir. A norma até então em vigor já previa exceções em que a troca de partido não implicaria perda da cadeira legislativa. Como isso não bastou, instituiu-se o vale-tudo com prazo de validade.
A história das federações se inclui nessa trajetória de remendos. Começou em 2017, quando o Congresso aprovou o fim das coligações em eleições proporcionais (para vereadores e deputados). Valeu para a municipal de 2020, mas em 2021 o Parlamento resolveu criar uma gambiarra, permitindo que os partidos se unissem em “federações”.
A ideia, de novo, era dar uma organizada no quadro de dispersão das legendas reunindo as mais identificadas ideologicamente e, assim, reduzir o número de partidos (hoje são 32, segundo o TSE, onde há pedidos de registro para outros mais de setenta). Seria também uma forma de salvar as agremiações ameaçadas pela exigência de patamar mínimo de votos, sem o qual não teriam acesso ao Fundo Partidário e à propaganda em rádio e televisão.
Outra vez houve muito barulho para quase nada. Por causa da cláusula de desempenho, apenas os pequenos se interessaram pelo assunto: PCdoB e PV se juntaram com o PT, o Cidadania uniu-se ao PSDB e o PSOL fechou uma federação com a Rede. De relevante não se produziu um alfinete a partir dessa nova regra.
E por que as federações não foram adiante? Porque é uma invencionice que nada tem a ver com a presente dinâmica partidária. De resto, péssima, mas não pode nem será corrigida na base da noção fantasiosa de que uma norma escrita ao sabor de conveniências pontuais possa se impor à vida como ela é.
Era bola cantada: os médios e grandes partidos não aceitariam a amarra de votar juntos no Congresso e manter alianças uniformes no país todo durante quatro anos. Isso está em completo desacordo com a realidade em que vigora o cada um por si e todos em nome dos interesses de ocasião.
Por essas e outras tantas, as federações são sérias candidatas a mais uma revogação das boas intenções das quais o inferno do sistema partidário/eleitoral continuará cheio até que suas altezas decidam fazer uma reforma política de verdade.
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Publicado em VEJA de 23 de março de 2022, edição nº 2781