A Teoria de Tudo: o real e a ficção na obra sobre Stephen Hawking
Filme que relata a vida do físico foi baseado no livro de Jane Hawking, sua ex-mulher
Uma das mentes mais brilhantes do mundo, Stephen Hawking teve sua vida pessoal vasculhada de forma sensível no filme A Teoria de Tudo, lançado nos cinemas no Brasil em 2015. A trama joga luz sobre o romance que o físico teve com Jane Hawking e deixa de lado detalhes de sua brilhante carreira científica.
À época de seu diagnóstico de esclerose lateral amiotrófica, com 21 anos, Hawking recebeu a notícia de que não passaria dos 23. Ao viver até os 76 anos, ele desafiou não só a doença, mas a própria ciência.
O filme pode não dar conta do poderio da produção cientifica do cosmólogo, mas mostra bem como o casamento de 25 anos com Jane o ajudou a sobreviver — e a contribuir com a ciência. Há, porém, passagens que destoam do relato feito pela ex-mulher do físico no livro de mesmo nome, que serviu de base para o longa, e da autobiografia de Hawking, Minha Breve História.
Confira abaixo o que é real e o que é ficção no filme que rendeu a Eddie Redmayne um Oscar de melhor ator em 2015:
A queda e o diagnóstico da doença
No longa dirigido por James Marsh, Stephen Hawking sofre uma queda enquanto sai do prédio da Universidade de Cambridge. Depois do incidente, é levado para o hospital e diagnosticado com esclerose lateral amiotrófica. Volta para o campus da faculdade e passa dias trancado em seu quarto. Não é bem essa história que Hawking conta em seu livro Minha Breve História, publicado pela primeira vez em 2013.
“No Natal, quando fui patinar no lago em St. Albans, caí e não consegui me levantar. Minha mãe percebeu esses problemas e me levou ao médico da família”, escreveu o físico em sua autobiografia. Ou seja, houve uma queda, mas ela não se deu da forma contada no filme. O diagnostico, contudo, é fiel à história real — incluindo a felizmente incorreta expectativa de 2 anos de vida dada a ele pelo médico.
Como Stephen conhece Jane
Nesta parte, o roteiro do cinema distorce um pouco a cronologia dos fatos. Jane, quando se interessa por Stephen, já sabe da sua doença, como relata no livro. Quem assiste somente ao filme, acredita que ela, depois de começar a se relacionar com o cientista, descobre a condição de saúde dele através de amigos. A verdade é que os dois estudaram na mesma escola primária. Se conheciam, portanto, desde cedo.
“Quando entrei no primeiro ano no colégio St. Albans, aos sete anos, nos primeiros anos da década de 1950, houve, por um curto período, um menino com cabelos caídos na testa e castanho-dourados que costumava se sentar colado à parede na sala de aula ao lado”, lembra Jane no livro. “Nunca conversamos, mas tenho certeza de que essa primeira lembrança é confiável, porque Stephen foi aluno daquela escola naquela época, antes de ir para uma instituição preparatória, a alguns quilômetros dali”, completa.
O filme mostra que os dois se conheceram em uma festa com muitos cientistas, na qual Jane apareceu com uma amiga. Essa festa de fato aconteceu (e foi a primeira vez que os dois tiveram uma conversa longa – embora não sozinhos como no longa. Mas Jane já sabia quem Stephen era e até já havia se sentido atraída por ele, como diz nessa parte do livro:
“Mal tínhamos caminhado cem metros, quando vimos algo estranho do outro lado da rua: lá, caminhando de modo incerto em sentido contrário, estava um homem jovem, com andar desajeitado, cabeça baixa, o rosto protegido do mundo sob uma indisciplinada cabeleira castanha e lisa. Imerso nos próprios pensamentos, ele não olhou nem para a direita nem para a esquerda, nem percebeu o grupo de alunas do outro lado da rua. Era um fenômeno excêntrico para aquelas monótonas e puritanas garotas do St. Albans”, diz sobre a primeira vez que viu o físico na juventude. “(…) continuamos nosso caminho até a cidade, mas não consegui desfrutar mais do passeio, porque, sem ser capaz de explicar exatamente o motivo, me senti desconfortável com o jovem que acabara de ver. Talvez houvesse algo sobre sua excentricidade que me fascinara, tendo em vista minha existência bastante convencional. Talvez eu tivesse alguma estranha premonição de que o veria de novo. Fosse o que fosse, aquela cena em si ficou profundamente gravada na minha mente.”
O início da relação
Depois da festa na qual conversaram pela primeira vez, o casal passou a se ver com uma frequência nada regular. E, até a relação dos dois engatar realmente, houve um longo caminho de encontros e desencontros – a relação não evoluiu de modo rápido como mostra o diretor James Marsh.
Jane Hawking não cita, por exemplo, a bonita cena do beijo na passarela que acontece logo após os dois irem ao baile em Cambridge. Mas ela lamenta, muitas vezes, o fato de o relacionamento não estar indo bem, como no trecho seguinte: “Essas visitas, embora urgentemente aguardadas, muitas vezes se revelaram decepcionantes para nós dois. A tarifa – dez xelins – fez um grande rombo na minha mesada de dez libras, e o curso do amor não corria nada bem. Não era preciso muita inteligência para perceber que Stephen não podia contemplar a ideia de embarcar em uma relação estável de longo prazo, por causa do prognóstico sombrio de sua doença”.
Stephen e Jane Hawking parecem ter decolado para uma relação séria somente depois do pedido de casamento, que, como ela descreveu, aconteceu com um sussurro em um “sábado à noite úmido e escuro”.
As apostas
Não é segredo que Stephen Hawking é bem-humorado. Com os amigos, o físico tinha mania de apostar sobre assuntos científicos. Uma cena do filme mostra Hawking conversando sobre uma aposta que fez, valendo a assinatura de uma revista. Seu professor pergunta se o que estava em jogo era a publicação científica britânica Nature. Stephen responde, rindo, que o prêmio na verdade era a PentHouse, periódico direcionado para o público masculino com reportagens diversas e fotos de mulheres seminuas — em seu livro, ele também comenta que a satírica Private Eye era uma opção.
Ainda mais peculiar é ver de que lado estava Hawking no jogo. O cosmólogo, que sempre estudou e defendeu os buracos negros, apostou contra eles. “Eu estava esperando perder essa aposta, já que eu obviamente fizera um grande investimento intelectual nos buracos negros. Mas, se eles não existissem, pelo menos eu teria o consolo de ganhar uma assinatura de quatro anos da revista Private Eye”, escreveu em sua biografia.
A traqueostomia
Um dos momentos mais dramáticos da história de Stephen Hawking aconteceu em Genebra. O longa-metragem A Teoria de Tudo faz o relato a partir da cidade de Bordeaux, na França, contando que o físico havia ido com os alunos a uma apresentação de ópera. Mas o próprio físico e também sua ex-mulher afirmam que o episódio aconteceu na Suíça, em visita à Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear (Cern).
Durante esta viagem, em 1985, Hawking pegou pneumonia e chegou a entrar em coma no hospital para o qual foi levado às pressas. Um acerto do filme é a sugestão dos médicos de desligar os aparelhos, o que realmente ocorreu. “Os médicos do hospital acharam que eu estava tão mal que sugeriram desligar o respirador e dar fim à minha vida, mas Jane se recusou e me levou, em uma ambulância aérea, de volta para Cambridge, para o Hospital Addenbrooke”, escreveu Hawking.
O cientista passou por uma traqueostomia, e ficou incapacitado de falar dali para frente. “Por certo tempo, a única maneira que eu tinha para me comunicar era soletrar as palavras, levantando as sobrancelhas quando alguém apontava para a letra certa em um cartão com o alfabeto”, relatou Stephen. Depois disso, ele foi apresentado ao programa Equalizer, do especialista em computação Walt Woltosz, e passou a falar com sintetizadores de fala, que reproduzem a voz robotizada, pela qual Hawking é conhecido até hoje.