Sem querer, a jornalista Shrabani Basu encontrou um tesouro ao visitar a Casa Osborne, residência de veraneio da rainha do Reino Unido na ilha de Wight. Ela tinha pesquisado a história do curry e sabia que a rainha Victoria (1819-1901) apreciava a comida indiana e tinha empregados vindos do país, então uma colônia inglesa. Nessa visita, porém, um retrato do criado Abdul Karim, pintado em tons de ouro, vermelho e creme, segurando um livro nas mãos, chamou a sua atenção. “Ele parecia mais um nobre do que um empregado. Isso despertou minha curiosidade”, diz Shrabani em entrevista ao blog É Tudo História.
Foi assim que ela desencavou um segredo enterrado desde a morte da rainha, que se tornou o livro Victoria & Abdul – The Extraordinary True Story of the Queen’s Closest Confidant (na tradução, “Victoria & Abdul – A Extraordinária História Real do Confidente Mais Próximo da Rainha”). Seu trabalho foi transformado no filme Victoria e Abdul – O Confidente da Rainha, em cartaz no Brasil, com direção de Stephen Frears, Judi Dench no papel de Victoria e Ali Fazal como Abdul Karim.
Para contar essa história, Shrabani passou quatro anos pesquisando, baseando-se nos diários da rainha e seus cadernos com aulas de urdu, idioma que Karim lhe ensinava, além dos diários de seu médico e documentos de outros membros da Casa Real. Ela também foi a Agra, na Índia, onde encontrou os descendentes de Karim, e descobriu seu diário perdido no Paquistão. “Sua história me levou a três palácios (Balmoral, Casa Osborne e Castelo de Windsor) e três países (Índia, Paquistão e Grã-Bretanha)”, conta a autora. Ela considera que o filme é 90% fiel aos acontecimentos relatados em seu livro e comenta a seguir os principais pontos da trama:
Recrutamento
Abdul Karim era escriturário na prisão de Agra, mas tinha sido útil na escolha de tapetes para uma exposição sobre a Índia que tinha acontecido. O superintendente da prisão tinha decidido enviar dois indianos para o Jubileu de Ouro da Rainha, a comemoração dos seus 50 anos no poder – na época, ela era Imperatriz da Índia também. “Abdul Karim era alto, inteligente e tinha um olho para a arte, por isso foi escolhido”, explica Shrabani, enfatizando que ele não tinha experiência em serviço doméstico. Mohammed Buksh, o outro servente, tinha recebido treinamento para servir a mesa e trabalhado com um marajá. No filme, o superintendente diz que teve de escolher Abdul às pressas porque o outro indiano alto tinha caído de um elefante. “Essa parte é ficção, para trazer um pouco de comédia”, diz.
O jantar
No filme, Karim e Buksh ficam num corredor apertado aguardando a vez de oferecer o mohur (medalha comemorativa) à rainha, enquanto serventes passam com os pratos do jantar. Na verdade, a entrega não foi feita durante o banquete. “Como criados, eles precisavam servir os pratos”, diz Shrabani. Um detalhe que chama a atenção — e provoca risos — é a rapidez da rainha para comer. Os nobres sentados à mesa precisam acompanhar o ritmo da monarca se quiserem se alimentar. “Ela terminava antes de todo o mundo, e os pratos de todos eram retirados”, conta a autora. No filme, ela também cai no sono entre um prato e outro, o que não é verdade. Mas é fato que, no Jubileu, em 1887, ela tinha 68 anos e já estava muito cansada.
A quebra de protocolo
Antes de entregarem o mohur à rainha, Karim e Buksh recebem instruções precisas de como se comportar. Por exemplo, não podem jamais dar as costas a Victoria – outra cena cômica no filme – nem olhar para ela, permanecendo sempre de cabeça baixa. No filme, Karim olha para a rainha, o que aconteceu realmente. “Como qualquer jovem de 24 anos curioso faria, Abdul olhou para a rainha”, conta Shrabani.
O Munshi e confidente
“A rainha fica interessada em Abdul desde o princípio”, diz Shrabani. Assim, na vida real como no filme, logo ele está cozinhando curry para ela, que manda incorporar o prato ao cardápio do palácio. Em um ano, ele se torna seu Munshi, ou professor, dando-lhe aulas de urdu (na época chamado de hindustani). Ela lhe oferece o título para que Abdul tenha status na Casa Real. Victoria também providenciou aulas reforçadas de inglês para que pudessem se comunicar melhor. “O filme é bem fiel no retrato”, diz . Em pouco tempo, os dois viram amigos. “Victoria escreve à sua filha que ele é reconfortante”, conta a jornalista. “Ela fala sobre seus filhos problemáticos, enquanto Abdul conta sobre seu país e a filosofia oriental. Ela pede a Abdul para trazer sua mulher e até dá conselhos sobre concepção. Visita a casa dos dois frequentemente e sempre toma chá com a mulher do Munshi. Leva toda a realeza europeia para visitá-los em sua casa.” No filme, Abdul parece esconder ser casado, um segredo que, quando revelado, desconcerta a rainha por alguns minutos. Mas, na verdade, ela sabia desde sempre que Abdul tinha uma mulher.
A manga e o trono
A rainha fica doida para provar uma manga após Abdul falar da fruta, que não era produzida na Grã-Bretanha. Ela pede que mandem um exemplar da Índia, que chega passada. “A história da manga é verdadeira. A Rainha realmente queria comer uma manga, mas levava seis semanas para chegar de navio, então ela sempre estava meio podre”, diz Shrabani. Abdul também conta sobre o Trono do Pavão, que a Rainha manda replicar no palácio. E descreve o Taj Mahal, que fica em sua cidade, Agra. “A rainha realmente escreveu que daria tudo para visitar o Taj Mahal. Ela nunca viajaria para a Índia, mas a Índia veio até ela na forma de Abdul Karim.”
A noite no Glassat Shiel
No filme, a rainha leva Abdul Karim para o Glassat Shiel, uma casa remota na Escócia, acessada por um lago. Isso aconteceu de verdade. “Foi significativo porque ela disse que jamais retornaria ao local após a morte de John Brown”, diz Shrabani sobre o confidente anterior da rainha. A relação de Victoria e Brown provocou muitos rumores na época e chegou a ser tema do filme Sua Majestade, Mrs. Brown (1997), de John Madden, também estrelado por Judi Dench.
Fofoca no palácio
A amizade entre a rainha e Abdul resultou nas mesmas especulações que a relação de Victoria com John Brown – a soberana ganhou o apelido de Sra. Brown dos membros da Casa Real. No filme Victoria e Abdul, a família real, liderada por seu filho Bertie (Eddie Izzard), e a criadagem fazem fofocas sobre a rainha e seu Munshi. Shrabani acredita que não ocorreu nada além de amizade entre os dois. “Embora o aspecto físico fosse importante, já que Victoria gostava de um homem forte e alto a seu lado, cuidando dela, o relacionamento foi platônico e funcionou em níveis diversos. Ele era seu melhor amigo, e também uma espécie de filho para ela.” A rainha tinha consciência do ciúme da Casa Real em relação a Abdul, a quem dava presentes, terras e títulos. Ela também tratava bem os membros da família de Abdul – o sobrinho do indiano estudou na Inglaterra, por exemplo, seu cunhado ganhou um emprego. “A rainha cuida de todos e faz questão de que estejam bem acomodados”, diz a jornalista, que esmiúça a presença da família de Abdul Karim no livro, resumida no filme. Victoria também chamava a atenção dos empregados e da família. “Ela os acusa de racismo e preconceito de classe.”
A morte de Victoria
No filme, Abdul Karim recebe permissão de entrar no quarto de Victoria quando ela está à beira da morte. “Na verdade, ele foi a última pessoa a vê-la antes do fechamento do caixão”, diz Shrabani. Durante o funeral, ele andou atrás das pessoas mais importantes.
O apagamento de Abdul
Após a morte da rainha, seu filho e herdeiro, Bertie, que seria coroado como rei Edward 7º, manda fazer uma busca na casa de Abdul Karim, queimando todas as cartas que trocou com a rainha. “Sim, é verdade, todas as cartas foram queimadas no lado de fora da casa de Abdul poucas horas depois do enterro da Rainha. Ele recebeu ordens de deixar o país imediatamente, assim como todos os outros indianos.” E quando Abdul morreu em 1909, oito anos após a rainha, Edward 7º mandou fazer duas buscas em sua casa em Agra, removendo cartões-postais e cartões de Natal assinados por Victoria. “Tentaram de todas as formas apagá-lo da história”, conta Shrabani. Mas a pintura e os diários e cadernos da rainha ficaram como chaves para a descoberta feita pela jornalista.