A verdade sobre ‘Judas e o Messias Negro’, belo filme laureado pelo Oscar
Longa inspirado em fatos conta a história de Fred Hampton, ativista da causa negra que acabou morto pelo FBI; confira o que é real e o que é ficção na obra
*O texto tem spoilers do filme Judas e o Messias Negro.
No auge da luta pelos direitos civis nos Estados Unidos, na década de 1960, a ascensão do presidente do Partido dos Panteras Negras no estado de Illinois, Fred Hampton, não era vista com bons olhos pelo FBI. Para obter informações sobre o ativista, o departamento de investigações colocou o jovem William O’Neal como infiltrado no partido. O filme Judas e o Messias Negro, dirigido por Shaka King, acompanha parte da trajetória de Hampton e mostra como O’Neal o traiu, levando a uma sucessão de eventos que culminaram no assassinato do ativista.
Exibido nos poucos cinemas em funcionamento durante a pandemia, o filme chegou nesta semana nas principais plataformas de streaming, disponível para compra e aluguel. Apesar de licenças dramáticas, Judas e o Messias Negro retrata esse episódio da história com boa fidelidade aos fatos. Confira o que é real e o que ficção na produção que garantiu a Daniel Kaluuya, intérprete de Fred Hampton, o Oscar de melhor ator coadjuvante.
Bill finge ser um agente do FBI para roubar um carro
Na Chicago de 1968, William O’Neal (Lakeith Stanfield, também indicado a melhor ator coadjuvante no Oscar) cruza com um belo Pontiac GTO vermelho, estacionado em frente a um bar. O golpista entra no estabelecimento apinhado de integrantes do grupo Crowns (gangue fictícia, amálgama de outros grupos negros da época). O’Neal diz ser um agente do FBI, coloca todos os presentes contra a parede e tira as chaves do dono do veículo. Desmascarado, ele foge glorioso, ao som de um pop setentista, no carrão – até ser pego pela polícia. Para escapar da sentença de prisão, topa o acordo proposto pelo agente do FBI Roy Mitchell (Jesse Plemons): se infiltrar no Panteras Negras e fornecer-lhe informações valiosas sobre o partido. A premissa inicial de Judas e o Messias Negro adiciona pitadas de ficção aos fatos reais: aos 17 anos, O’Neal roubou um carro com um amigo e ambos provocaram um acidente do qual fugiram. O “azar” é que tinham deixado nomes e endereços verdadeiros na inscrição de um salão de bilhar próximo ao local do incidente, e foi assim que o agente Mitchell o encontrou meses depois. O’Neal, em entrevista à série documental Eyes on the Prize II, revelou que, na ocasião, Mitchell disse algo como: ‘Bom, não há necessidade alguma em tentar me enganar. Eu sei que você é o responsável, mas não é grande coisa. Sei que podemos resolver isso’.” Meses depois desse primeiro contato, O’Neal exibiu a falsa identificação do FBI ao ser parado por agentes. De acordo com o jornal Chicago Tribune, em matéria de 1973, ele “calmamente disse ao policial que era um agente do FBI e apresentou uma identificação falsa para provar isso” – o que o levou direto aos federais genuínos.
“Mimos” do FBI para William O’Neal e sua relação com Roy Mitchell
Assim como no filme, William O’Neal recebia dinheiro do agente do FBI Roy Mitchell para atuar como infiltrado nos Panteras Negras. Segundo o livro The Assassination of Fred Hampton, “ele sempre teve dinheiro; estava constantemente se oferecendo como motorista para Fred em seu carro grande”. A relação entre os dois é retratada com base na transcrição da entrevista do informante para o Eyes on the Prize 2. Em entrevista ao Decider, os roteiristas disseram que as falas de O’Neal não eram tão passíveis de confiança: “Pegamos o que ele disse e fizemos algumas suposições com base em outra pesquisa sobre a relação entre informantes e seus manipuladores.” A cena em que O’Neal vai até a casa de Mitchell, por exemplo, foi baseada em um comentário do informante, mas os diálogos que aparecem no longa são ficção, já que ele nunca revelou o que foi dito na conversa.
Relação de William O’Neal e Fred Hampton
Após se juntar aos Panteras Negras para investigá-los secretamente, O’Neal demonstrou o oposto do que se espera de um informante: ao invés de ficar na surdina, foi ativo nas atividades do partido. Em pouco tempo tornou-se chefe de segurança local e também segurança pessoal de Fred Hampton. Na vida real, as duas coisas aconteceram, e a relação entre o “Judas” e o “Messias” é retratada de maneira verossímil. Apesar da boa convivência, os dois tiveram suas rusgas, principalmente pela incitação à violência promovida por O’Neal – o que, de fato, aconteceu. A cena em que o informante mostra explosivos para Hampton e sugere um ataque à prefeitura de Chicago é inspirada em um acontecimento real: O’Neal ofereceu explosivos para o Pantera Negra Louis Truelock encorajando-o a usá-los em um assalto.
Ataques da polícia à sede dos Panteras Negras
O atentado policial à sede dos Panteras Negras mostrado no longa teve como inspiração dois eventos reais. O primeiro, e principal, foi o tiroteio entre a polícia e os Panteras Negras ocorrido em 1º de agosto de 1969. Diferente do longa, o confronto aconteceu de madrugada e durou cerca de 30 minutos. Segundo relatos de jornais, tudo começou quando policiais pararam dois homens que entravam na sede munidos de espingardas. No final, após rendição, três Panteras Negras foram presos e cinco policiais ficaram feridos. Assim como no filme, os policiais supostamente teriam ateado fogo na sede do partido. O outro acontecimento que inspirou a cena ocorreu em 4 de outubro de 1969, quando a polícia disse ter visto um atirador com espingarda no telhado da sede dos Panteras Negras. Segundo o advogado Jeffrey Haas, não havia ninguém quando os policiais agiram. Após este ataque, William O’Neal, que tinha habilidades como carpinteiro, ajudou a reconstruir o prédio – o que é retratado no filme.
Fred Hampton acusado de roubar 70 dólares em sorvete
Fred Hampton era uma figura pública de trajetória meteórica. O ativista detinha de uma firmeza de princípios (e oratória) que arrebatava os mais diversos tipos de apoiadores, de companheiros da causa racial a entusiastas dos Confederados. Tamanho domínio de massas levou o FBI a considerá-lo a figura de maior perigo para os Estados Unidos da década de 60, e, como tal, deveria ser contido antes que virasse um “messias negro” pela defesa intransigente dos direitos civis. A pretexto de tirá-lo de circulação, Hampton foi injustamente acusado de roubar 70 dólares em sorvete de um vendedor ambulante e preso em maio de 1968 – algo retratado no longa. Condenado, Hampton a princípio teria liberdade condicional, mas, depois de uma coletiva de imprensa do procurador Edward Hanrahan, recebeu a sentença de dois a cinco anos de prisão. O advogado Jeffrey Haas, autor do livro O Assassinato de Fred Hampton: Como o FBI e a Polícia de Chicago Assassinaram um Pantera Negra (sem tradução no Brasil), diz que o líder dos Panteras Negras sabia que era alvo da polícia. “Acreditamos que policiais coagiram o vendedor de sorvetes a identificar Fred na época”, disse Haas à BBC.
O assassinato de Fred Hampton
O assassinato de Fred Hampton aos 21 anos de idade pouco recorre à ficção no filme, muito mais para preencher lacunas – dado os esforços de agentes públicos em abafar as investigações – do que para fins dramatúrgicos. Em novembro de 1969, o FBI conseguiu o aval da Polícia de Chicago para invadir a casa em que Hampton e a noiva Deborah Johnson (interpretada por Dominique Fishback) dormiam. Era madrugada de 4 de dezembro quando catorze federais, com artilharia de guerra, dispararam mais de 90 tiros contra os nove Panteras Negras que lá estavam. Apesar da história contada pelo FBI ser outra, somente um disparo ocorreu do outro lado do embate: Mark Clark, de 22 anos, estava próximo à porta de entrada e atirou por reflexo, poucos segundos antes de ser morto. Com a planta do apartamento dada por O’Neal, os policiais logo se adiantaram para o quarto de dentro. Fred Hampton estava inconsciente – não é certo que O’Neal o tenha drogado como mostra o filme, embora essa seja a hipótese mais plausível – e, apesar dos esforços de Deborah, grávida de 9 meses, e de outros dois rapazes, ele não acordou a tempo de se defender dos tiros que recebeu. Forçada para fora do quarto, a noiva de Hampton ouviu um policial dizer que “ele mal está vivo, mal vai sobreviver”, ao que dois outros tiros foram ouvidos e a infame frase, reproduzida pelo longa: “Ele está bem morto agora.”
É na reconstrução de detalhes da cena que o filme usa pinceladas de ficção. Todos os policiais na batida foram inventados, talvez porque nunca tenham sido identificados na vida real. Outra extrapolação do enredo é a cena em que O’Neal recebe ordens para drogar Hampton: apesar de todas as evidências sugerirem que sim – o Pantera Negra adormeceu no meio de uma frase enquanto telefonava para a família, não conseguiu acordar durante a invasão e tinha barbitúricos no sangue, como indicava uma autópsia –, O’Neal nunca admitiu o feito.
O suicídio do verdadeiro William O’Neal
O filme se encerra com um vídeo do verdadeiro William O’Neal dizendo: “Vou deixar que a história fale por mim”. O corte em seguida, feito em fundo preto, diz que o programa para o qual ele deu entrevista, Eyes on the Prize 2, foi ao ar em 15 de janeiro de 1990 – mesmo dia em que se homenageia o ativista Martin Luther King, e mesmo dia em que William O’Neal cometeu suicídio. O epílogo sugere que ele tirou a própria vida por ter se arrependido da traição a Fred Hampton, mas a correlação não é tão imediata assim. O’Neal de fato cometeu suicídio na madrugada do dia 15 de janeiro, mas, o episódio em que aparece só estreou pouco mais de um mês depois de sua morte, em 19 de fevereiro. A suposição de Judas e o Messias Negro é, portanto, imprecisa.