Entre os anos 80 e 90, os tabloides italianos se deliciavam com as fervorosas brigas da família Gucci pelo controle do incontornável império do mundo da moda. O conflito acabou em tragédia quando, na manhã de 27 de março de 1995, o último herdeiro, Maurizio Gucci, foi assassinado com quatro tiros à queima-roupa a mando de sua ex-esposa, a socialite Patrizia Reggiani. A história chegou aos cinemas, adaptada pelo cineasta Ridley Scott, em Casa Gucci, filme inspirado no livro-reportagem de mesmo nome da autora Sara Gay Forden. Estrelado por Lady Gaga e Adam Driver, nos papéis de Patrizia e Maurizio, a produção, infelizmente, faz uma análise caricata do homicídio e da família — que está furiosa com o longa. Porém, muitos dos episódios narrados de fato aconteceram. Confira abaixo o que é real e o que é ficção no filme:
Rodolfo nunca aceitou o relacionamento de Maurizio com Patrizia
Patrizia e Mauricio se conheceram durante a festa de uma amiga em comum, em 1970. Na vida real, Patrizia de cara reconheceu o futuro herdeiro da Gucci, já que a anfitriã havia lhe contado sobre a presença ilustre da festa na noite anterior — diferentemente do longa de Ridley Scott que, para deixar a trama mais divertida, fez Patrizia confundir Maurizio com um garçom. O namoro escalou rapidamente e logo o assunto casamento surgiu. Quem não gostou nada da história foi o pai do jovem, Rodolfo (Jeremy Irons), que desconfiava de Patrizia. Apaixonado pela garota com ares de Elizabeth Taylor, Maurizio confrontou o pai e seguiu adiante com o relacionamento. Como resultado, ele foi deserdado, acabou na casa da então noiva e passou a trabalhar no negócio de caminhões do pai dela. O desprezo de Rodolfo por Patrizia era tanto que ele sequer compareceu ao casamento do filho, em 1973. A cisão só teve fim anos depois, quando Rodolfo estava mal de saúde e decidiu reatar a relação com Maurizio.
Pina, a amiga médium
Durante uma noite qualquer após seu casamento com Maurizio, Patrizia assiste televisão e acaba no programa de uma médium chamada Pina Auriemma, interpretada por Salma Hayek. Ela não pensa duas vezes: pega o telefone e liga para a mulher mística com o intuito de perguntar se conseguiria alcançar seus objetivos — que envolviam luxo e riqueza. De acordo com o livro de Forden, Pina realmente existiu, mas a forma como ela e a socialite se tornaram amigas foi completamente diferente na vida real. Maurizio e Patrizia conheceram Pina durante uma viagem a Nápoles, em uma estação de águas em Ischia. Durante o filme, as participações pontuais da personagem de Hayek a transformam numa médium, quase bruxa, com poderes sensitivos. Em entrevista à Vulture, o roteirista do longa, Roberto Bentivegna, contou que é totalmente inventada a cena em que Pina tem uma visão que revela a traição de Maurizio com sua amiga de infância, Paola Franchi (Camille Cottin). Pina nunca foi uma médium de televisão, apenas entendia muito de tarô, e na vida real ficou tão próxima de Patrizia que durante anos administrou uma filial da Gucci em Nápoles.
Assinatura de Rodolfo falsificada
Após a morte de Rodolfo, em 1983, Maurizio, seu único filho, herda a fortuna do pai e consequentemente os seus 50% de ações na Gucci. Durante uma cena da produção, o advogado da família diz ao herdeiro do império da moda que Rodolfo não havia assinado os papéis do certificado de ações que lhe garantiam parte da empresa — sem o documento ele precisaria pagar milhões de libras em impostos sobre a herança. O filme então dá a entender que Patrizia forjou a assinatura do sogro. O que aconteceu na realidade foi que Aldo e seus três filhos (no longa existe apenas um, Paolo) montaram um dossiê que acusava Maurizio de ter forjado a assinatura de Rodolfo. O objetivo era retomar o poder da Gucci. Após anos do caso na justiça, o marido de Patrizia foi absolvido das acusações por falta de provas. Entretanto, segundo o jornal Los Angeles Times, um assistente fiel de Rodolfo disse ter visto Patrizia falsificar a assinatura — narrativa comprada pelo filme.
Paolo manipulado para denunciar as falcatruas do pai
Com o objetivo de tomar posse integral da Gucci, Maurizio e Patrizia manipulam Paolo (Jared Leto) para tirar Aldo (Al Pacino), pai do rapaz, da presidência da empresa de uma vez por todas. Com promessas de que apoiariam a marca própria do estilista caricato (não cumpridas), o casal conseguiu com que Paolo entregasse à polícia documentos provando que seu pai havia desviado dinheiro e sonegado impostos. Aldo então é investigado pela Receita Federal americana e, em seguida, preso. A realidade foi um pouco diferente, apesar do filme ter mantido a essência do que aconteceu. Paolo não precisou ser manipulado para entregar o pai à polícia — ele fez isso sozinho. Durante os anos que passou na Gucci, o designer fracassado juntou diversos documentos financeiros que atestavam as falcatruas de Aldo, como o desvio de milhões de dólares para paraísos fiscais com notas falsas. Segundo o livro que inspirou o filme, Paolo fez isso com esperança de que o pai considerasse trazê-lo novamente ao seio da família ou mesmo deixá-lo usar o nome e o sobrenome Gucci em sua própria linha de roupas.
A fita de ameaça que Patrizia enviou a Maurizio
Depois que o herdeiro da Gucci pediu o divórcio, Patrizia ficou furiosa. Com exceção das rusgas entre eles, que culminaram no fim do relacionamento, a personagem de Lady Gaga quase não expressa seu ódio pelo ex-marido na ficção — algo bem diferente da realidade. De acordo com as apurações de Forden, Patrizia não escondia de ninguém que odiava Maurizio e falava em alto e bom som que queria vê-lo morto. No filme, o episódio que condensou essa fúria realmente aconteceu. Com a ajuda de Pina, Patrizia gravou uma fita em que ameaçava o herdeiro da Gucci com palavras odiosas. O mauricinho do longa se recusou a ouvir a mensagem completa e simplesmente a ignorou — já o da vida real não só se recusou a escutar a mensagem completa como também teve um ataque de fúria e jogou a fita na parede. O divórcio foi oficializado em 1994 e Maurizio se uniu à Paola.
O assassinato do herdeiro da Gucci
Os detalhes do assassinato de Maurizio Gucci e o que aconteceu depois não foram explorados com detalhes por Ridley Scott, que preferiu focar seu filme na burocrática guerra familiar. Porém, no que diz respeito à morte em si do personagem de Adam Driver, a produção manteve-se fiel aos fatos. Assim como na vida real, Patrizia foi a mandante do assassinato e pediu à amiga Pina que contratasse pessoas para o trabalho sujo. No dia da morte do ex-marido, a socialite escreveu no seu diário a palavra “paradeisos”, grego para paraíso. Pouco tempo depois, expulsou Paola do apartamento de Maurizio para morar lá com a filha, Alessandra (o casal teve duas meninas, mas no longa apenas uma foi retratada). Pina e Patrizia, além de Benedetto Ceraulo, o atirador; Orazio Cicala, que dirigiu o carro de fuga; e Ivano Savione, outro intermediador do crime; foram julgados e condenados pelas investigações policiais — Patrizia foi presa em 1997. Os pequenos detalhes que ficaram de fora do filme dizem respeito ao fato de a socialite ter se irritado quando os assassinos demoraram para cumprir o serviço — no longa, ela e Pina pagam os homens e logo depois Maurizio é morto. Ela foi liberada em 2016 e hoje, aos 72 anos, vive longe dos holofotes, em Milão.