A vida de Celie é do tipo que assusta. Paupérrima e sem autonomia, a jovem negra vive sob a sombra do racismo nos Estados Unidos do começo do século XX, é tratada como lixo pelo pai e, depois, pelo marido. Para as mulheres, a liberdade após décadas do fim da escravidão era relativa — afinal, elas continuavam serviçais, fosse na própria casa ou como domésticas. Seu único refúgio é a irmã mais nova, Nettie, um fio de alegria que, a certa altura, também lhe é tirado. À primeira vista, a sofrida Celie não possui os atributos ou a trajetória de apelo que atrai multidões ao cinema. Mas, desafiando as probabilidades, foi o que ela fez: a garota é personagem central do filme A Cor Púrpura (The Color Purple; Estados Unidos; 2023), que chega aos cinemas na quinta-feira 8. A produção, agora um musical, reforça a popularidade frutífera do livro da americana Alice Walker, lançado em 1982 e premiado com um Pulitzer — obra que ganhou uma adaptação no cinema em 1985, dirigida por Steven Spielberg, além de um premiado espetáculo na Broadway.
Levar a trama novamente à tela era uma missão capciosa que o cineasta ganense Blitz Bazawule assumiu, seguro de que poderia contribuir com um novo olhar — e foi o que ele fez. “Existe uma ideia comum de que pessoas lidando com traumas são dóceis e esperam um salvador. Mas não acredito nisso”, disse o diretor a VEJA. “Gente como a Celie está em busca de uma saída, elas não são passivas.”
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A sacada veio quando Bazawule, que ganhou projeção como um dos diretores de Black Is King, álbum visual de Beyoncé, voltou ao texto original. O livro epistolar começa com Celie escrevendo cartas para Deus — logo, havia nela não só esperança como imaginação e criatividade. A versão de Spielberg se mantém como uma adaptação bela e acachapante, mas carrega críticas que trafegam por campos sutis da representatividade: para além do olhar de piedade no retrato de Celie, vivida então por Whoopi Goldberg, o diretor amenizou as cenas de romance lésbico entre a protagonista e Shug Avery (Margaret Avery), uma cantora livre e desinibida. Bazawule entende as escolhas de Spielberg, agora produtor do musical: “Era um filme dos anos 1980 adaptado para aquela época. Talvez daqui a quarenta anos uma diretora negra e gay faça outra versão ainda mais pessoal que a minha”.
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Quem assume com brilho o lugar que foi de Whoopi é a atriz e cantora Fantasia Barrino — que já havia desempenhado o mesmo papel na Broadway. Ela divide o protagonismo com Taraji P. Henson, na pele da exuberante Shug, e com Danielle Brooks — que concorre ao Oscar de atriz coadjuvante ao dar vida a Sofia, amiga desbocada de Celie (no filme anterior, a personagem foi vivida por Oprah Winfrey, agora também produtora do musical). Por quase quatro décadas, elas passam por altos e baixos até alcançar a redenção. O trio espelha características da escritora do livro: hoje aos 79, Alice Walker é uma intelectual respeitada, assumidamente bissexual e que saiu da miséria para enfrentar uma sociedade que a repelia. Walker já citou Harriet Tubman, ex-escrava que se tornou abolicionista, como exemplo: “É crucial que as mulheres negras se apeguem à tradição dela. Você se liberta e retorna para libertar outras”. O sonho de liberdade, enfim, se revela possível.
Publicado em VEJA de 2 de fevereiro de 2024, edição nº 2878