Depois que Barbie virou vítima do conservadorismo americano, era questão de tempo para que a tendência chegasse até o Brasil. Com sucesso estrondoso nos cinemas do mundo inteiro em menos de uma semana em cartaz, o filme da boneca loira despertou a ira de brasileiros à direita, políticos bolsonaristas e grupos evangélicos — que pedem até boicote. Eles acusam Barbie de deturpar os “valores familiares”, sendo mau exemplo para as crianças. O curioso é que, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, o filme recebeu classificação indicativa para maiores de 12 e 13 anos, respectivamente. Aqui, a definição se deve à presença de temas maduros, complexos para o entendimento dos pequenos, e algumas piadas de duplo sentido. O filme nem mesmo foi vendido como destinado a esse público.
Antes do lançamento, a deputada estadual bolsonarista Alê Portela (PL-MG) começou uma campanha em seu Instagram, alertando, justamente, que não se trata de um filme para o público infantil. A lista de “argumentos” contra o filme inclui: o dito retrato de “assédio, prisão e bebida alcoólica” no mundo real, bem como as reflexões existenciais da boneca; a presença LGBT, com uma atriz trans — a Barbie Médica, interpretada por Hari Nef –; e a “decadência dos princípios familiares” como compaixão, autossacrifício e feminilidade. Outros políticos que ressoaram a cruzada foram a deputada federal Bia Kicis (PL-DF) e Abraham Weintraub, ex-ministro de Bolsonaro, que rotulou Barbie como um nome “a serviço do demônio”. Em seu Twitter, ele publicou uma foto de Klaus Barbie, oficial nazista ligado ao Holocausto, conhecido como “carniceiro de Lyon”. “Protejam seus filhos de qualquer linha ideológica de Barbie”, escreveu Weintraub.
Grupos evangélicos também se destacam no alvoroço, vociferando o presumido desrespeito com a moral tradicional cristã. Portais como o Gospel Mais repercutiram o site americano Movieguide, dedicado a inspecionar produtos de entretenimento para informar famílias, que publicou um artigo intitulado “Atenção: não leve sua filha para ver Barbie”. A justificativa é de que o filme “esquece seu público principal formado por famílias e crianças enquanto atende a adultos nostálgicos e promove histórias de personagens transgêneros”. Outro principal alvo dos protestos é a cena inicial do longa, divulgada em um teaser há sete meses, em que, ao descobrirem a Barbie, meninas se revoltam contra as bonecas do tipo bebê — uma destruição da ideia de maternidade, na concepção deles.
Nos Estados Unidos, Barbie já havia virado bode-expiatório dos conservadores mesmo antes de seu lançamento, com mobilização, igualmente, empenhada pela extrema-direita e setores religiosos. Desde a divulgação do trailer, políticos republicanos reclamaram de uma cena em que há uma versão de mapa-múndi na qual o Mar do Sul da China, uma área contestada por países vizinhos, está representado cartograficamente como os chineses o fazem. Para os senadores Marsha Blackburn, do Tennesse, e Ted Cruz, do Texas, isso bastou para acusar o longa de promover “propaganda comunista chinesa”, e, por extensão, Hollywood de tentar agradar o país asiático para escapar de possíveis censuras. Em resposta ao estardalhaço, a Warner Bros. afirmou que o mapa é apenas um desenho que emula traços infantis, e que não há a intenção de fazer declaração alguma através dele. Uma outra avaliação do filme que ressoou entre a direita americana foi a de Ginger Gaetz, (esposa de Matt Gaetz, republicano membro da Câmara dos Representantes) para quem Barbie “negligencia qualquer noção de fé ou família, e tenta normalizar a ideia de que homens e mulheres não podem colaborar positivamente (eca)”, escreveu no Twitter.
Celebrado pelo público e especialistas em cinema, o filme da diretora Greta Gerwig constrói, através da sátira e humor afiado, críticas oportunas sobre o patriarcado e a persistente disparidade entre os gêneros, a sociedade movida pelo consumo e, principalmente, põe em xeque a própria boneca, fazendo um importante mea-culpa por ter reforçado um padrão de beleza e de vida inalcançável para sucessivas gerações de mulheres. Barbie é também uma produção inclusiva, que traz em seu elenco uma diversidade de corpos e tons de pele. Coloca, ainda, os homens na posição de questionamento da própria masculinidade tóxica, através do boneco Ken.
Em resumo, esse conjunto de fatores ameaçaria, na visão conservadora e cristã, a “família” e os “bons costumes”. Não é de hoje que tal setor da sociedade demoniza Hollywood — ou qualquer símbolo cultural robusto o bastante para ser apontado como ícone progressista e, por isso, cerne de todos os males. É de praxe que se revoltem com produtos de entretenimento, como filmes e séries, acusando-os de promover normas supostamente deturpadas e anti-sistema — monstros que querem poluir a mente das crianças e arruinar a civilização ocidental como se conhece. Enquanto isso, no mundinho cor-de-rosa da Barbielândia, tudo parece correr muito bem.