Um vilarejo pesqueiro na Irlanda vive uma relação conturbada com o oceano e sua força indomável: ao mesmo tempo que o mar provê o sustento e movimenta a economia da pequena comunidade, vira e mexe ele também toma para si pescadores — geralmente homens que morrem afogados diante da maré rápida e traiçoeira. Uma dessas mortes acontece no início do filme Criaturas do Senhor (God’s Creatures; Irlanda; 2022), em cartaz nos cinemas. Durante o funeral do rapaz, uma jovem mãe avisa, com o bebê no colo, que logo vai ensinar o pequeno a nadar para evitar uma tragédia similar em sua vida. As mulheres mais velhas a repreendem: os que aprendem a nadar podem morrer tentando salvar os demais. A lógica mesquinha diz muito sobre a falsa ideia de comunidade do local: apesar de comerem juntos, dividirem fardos e também lucros, as pessoas dali estão acostumadas a passar seus interesses na frente dos de seus semelhantes.
Aileen (a impecável Emily Watson) parece alguém que foge à regra. Gentil e trabalhadora, ela é gerente da principal peixaria da cidade, onde mulheres limpam e preparam os peixes e frutos do mar para serem comercializados. Quando o filho que ela não via há anos volta para casa, sem aviso prévio, ela explode de alegria — nem questiona o real motivo do misterioso retorno. Isso até o rapaz (Paul Mescal) ser acusado de estupro por uma jovem do vilarejo — e Aileen, em choque, mentir para a polícia a fim de lhe garantir um álibi.
Exemplar de uma onda de filmes recentes sobre abusos sexuais, como os irretocáveis Tár e Entre Mulheres — e uma clara resposta do meio ao movimento antiassédio MeToo —, o longa das diretoras americanas Saela Davis e Anna Rose Holmer opta por um ponto de vista peculiar: saem do protagonismo a vítima, o abusador e até a investigação policial para dar espaço ao incrédulo olhar da mãe do criminoso. Assim, o roteiro levanta questões éticas delicadas sobre os limites da proteção materna e a dificuldade de uma mãe em enxergar o lado sombrio de seus filhos. Sem testemunhar o crime ou ter uma confissão do rapaz, Aileen abraça o autoengano: para ela, o filho que a trata como uma rainha não seria capaz de atacar alguém; logo, a moça que o acusou deve ter se enganado ou agiu de má-fé.
O espectador também não testemunha o crime, mas vê as marcas do trauma na vítima — outra escolha sutil das cineastas. É da boca da jovem atacada que sai o título do filme: “Somos todas criaturas do Senhor”, diz ela, ao perdoar um desafeto. A frase, porém, ganha outro sentido ao longo do filme: ninguém está acima do bem e do mal. Mãe e filho vão provar da lição.
Publicado em VEJA de 19 de abril de 2023, edição nº 2837
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