Benedict Cumberbatch tinha uma meta: antes dos 40 anos, o ator inglês queria protagonizar uma montagem de Hamlet, obra incontornável de Shakespeare, reservada à nata da atuação no teatro londrino. A missão foi cumprida em 2015, quando ele tinha 39. Na mesma época, Cumberbatch conversou com a Marvel sobre um futuro projeto. O estúdio do rentável mundo dos super-heróis cobiçava o ator para o papel do Doutor Estranho, um mago com habilidades psicodélicas. Educadamente, Cumberbatch explicou que Hamlet era sua prioridade. A Marvel, então, fez um movimento raro: alterou a estreia da superprodução que leva o nome do herói, lançada em 2016, para se encaixar na agenda do ator. O empenho atesta a relevância de Cumberbatch. Ao reforçar o elenco de medalhões do estúdio, ele agregou prestígio e qualidade ao universo Marvel. Sua versatilidade se revela crucial em Doutor Estranho no Multiverso da Loucura, segundo filme-solo do herói, em cartaz nos cinemas. Com acesso a diferentes universos — graças à chegada de uma nova heroína, a adolescente America (Xochitl Gomez), capaz de abrir portais entre eles —, o mago viaja por mundos distintos e depara com outras versões de si. “Para um ator, viver um só personagem de formas variadas foi uma divertidíssima egotrip”, disse um sorridente Cumberbatch a VEJA via Zoom. “Colocá-lo diante dele mesmo foi como uma autoterapia que acelerou seu amadurecimento.”
Doutor Estranho – Sina dos Sonhos
O paralelo psicológico se estende aos demais personagens — especialmente a Wanda, a Feiticeira Escarlate, interpretada por Elizabeth Olsen, que passa por uma devastadora fase do luto: a raiva. Ao perder o marido, Visão (Paul Bettany), na alucinada guerra dos Vingadores contra o vilão Thanos, Wanda se enclausurou em uma cidade pequena onde, em negação, criou uma realidade paralela. Com o poder da mente, ela escravizou os moradores dali, vertidos em coadjuvantes de um mundo perfeito, no qual Visão continuava vivo e tinha com ela dois adoráveis filhos. O drama foi narrado com brilho na minissérie WandaVision, do Disney+, primeira empreitada da Marvel na expansão de seu já complexo universo cinematográfico para a plataforma de streaming. No novo Doutor Estranho, a evolução de Wanda tem um desdobramento: ela ganha a possibilidade de se apossar do corpo de outra versão sua em uma realidade na qual pode, enfim, ser uma mãe feliz.
A coisa toda é complexa e delirante, mas deriva justamente daí a força dessa ferramenta narrativa cara à Marvel. Por meio do chamado multiverso, o estúdio é capaz de despachar personagens e trazê-los de volta com agilidade, e até de amarrar pontas soltas deixadas pelo famigerado troca-troca de atores em Hollywood — no ano passado, Homem-Aranha: sem Volta para Casa reuniu Tobey Maguire, Andrew Garfield e Tom Holland, que já vestiram o collant do herói-aracnídeo. O resultado: 1,8 bilhão de dólares em bilheteria.
Sob a batuta de Sam Raimi, o multiverso ganha agora um franco tom de filme de terror. Cineasta que deu o start na onda de super-heróis no cinema com Homem-Aranha, de 2002, Raimi ficou os últimos dez anos afastado da direção e marca seu retorno com Multiverso da Loucura. Nesse hiato, ele se resignou a produzir jovens diretores em filmes de horror, filão que o lançou com A Morte do Demônio (1981). A união das duas áreas de interesse em Doutor Estranho lhe faz bem. Raimi usa com sabedoria as ferramentas do terror para se aprofundar em questões que não se resumem ao susto, como as amarras da religião ou a solidão da vingança.
Doutor Estranho: Os Últimos Dias da Magia: Nova Marvel Deluxe
Aqui, ele se ampara em uma insistente questão que martela a mente humana: “e se?”. “Se eu tivesse agido assim, hoje eu estaria feliz?” “Se eu tivesse feito isso, evitaria essa tragédia?” Ao transitar por outros mundos, alguns melhores, outros bem piores que o seu, Doutor Estranho encara o “e se” diante dos erros e acertos de suas outras versões. Qual não é sua surpresa ao notar um padrão de comportamento que faz dele mesmo, seja onde for, seu maior antagonista. “O Doutor Estranho vai perceber que não tem tanto controle quanto imaginava”, analisa Cumberbatch. Nem só em Shakespeare há personagens trágicos.
Publicado em VEJA de 11 de maio de 2022, edição nº 2788
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