Filme de Ângela Diniz envereda pelo pior caminho ao retratar feminicídio
Filme escolhe focar narrativa na relação conturbada do casal, desperdiçando o contexto que fez do caso um dos assassinatos de maior repercussão do país
No dia 30 de dezembro de 1976, a socialite mineira Ângela Diniz foi morta com quatro tiros na cabeça pelo então namorado, Raul Fernando do Amaral Street, mais conhecido como Doca Street. Réu confesso, ele protagonizou um julgamento que entrou para a história como um show de horrores. Ângela, a vítima, foi pintada como uma “mulher veneno”, que seduziu o pobre Doca e depois quebrou seu coração, motivando-o a matá-la em “legítima defesa da honra”. Há 40 anos, o argumento colou, e Doca foi sentenciado a apenas dois anos em regime aberto. Foi necessária uma ampla campanha feminista, sob o slogan de “quem ama não mata”, para a abertura de um novo julgamento, que resultou em uma sentença de quinze anos – sendo apenas três em regime fechado. O assassinato cruel, e que revela a face machista da sociedade e do sistema judiciário da época, foi vertido em filme em Ângela, que estreia nos cinemas nesta quinta-feira, 7. A produção, porém, comete um pecado injustificável: além da morte propriamente dita de Ângela, nada do absurdo contexto sexista e do julgamento aparece no longa.
Dirigido por Hugo Prata (de Elis, 2016), o filme escorrega já na concepção, quando escolhe focar a narrativa no relacionamento-relâmpago de Doca (Gabriel Braga Nunes) e Ângela (Ísis Valverde). Com o escopo de tempo limitado, o longa se arrasta do momento em que eles se conhecem, em uma festa na mansão da então esposa de Doca, até o assassinato, que se dá meses depois, na casa de Búzios onde o casal passou a morar. Como o final é conhecido por todos, não há mistério na história: sabe-se, em última instância, que Ângela será morta por Doca, crime que hoje seria enquadrado como feminicídio. Enquanto isso não acontece, o espectador acompanha aflito os diálogos imaginados que tentam, sem muito sucesso, retratar como o relacionamento torrencial do início, regado a sexo e declarações de amor, evoluiu para agressões físicas diárias e a morte derradeira.
Idealizado como um romance de final trágico, o longa carece das camadas que fizeram do assassinato de Ângela Diniz um dos casos de maior repercussão no Brasil. Quando conheceu Doca, Ângela já era uma mulher influente na sociedade, mas a personagem vivida por Ísis Valverde acaba tragicamente resumida às agressões sofridas no relacionamento abusivo e em seu assassinato, desperdiçando a chance de explorá-la para além do final trágico. Encerrar o filme com o assassinato também joga fora a chance de explorar a repercussão do caso na época. O podcast Praia dos Ossos, por exemplo, ganhou fôlego ao se afastar da narrativa do crime pelo crime e debruçar-se sobre algo igualmente perturbador: o contexto que permitiu que uma mulher morta a sangue frio fosse transformada em vilã enquanto o assassino confesso ganhava status de ídolo, com direito a camisetas em sua homenagem e pedidos de liberdade. Sem nada disso presente, o resultado é uma narrativa que explora a tragédia pela tragédia – e um filme que parece estar pela metade.