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‘Mansão Mal-Assombrada’ atesta que Hollywood foi tomada por praga criativa

Carente de cenografia, carisma ou propósito, filme é uma constrangedora prova do atual sucateamento das grandes produções de estúdios como a Disney

Por Thiago Gelli Atualizado em 14 Maio 2024, 00h01 - Publicado em 27 jul 2023, 11h20
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  • Em 1970, o poeta Vinicius de Moraes imaginou uma casa muito engraçada: sem teto, sem chão, sem penico, sem parede, sem nada. Sua letra — popularizada na canção A Casa, gravada na voz de Toquinho — foi inspirada pela Casapueblo do pintor Carlos Páez Vilaró, que a construiu no litoral uruguaio ao longo de trinta anos. Mas, hoje, poderia ter outra fonte: Hollywood. Por lá, nos grandes estúdios, a madeira, as quinquilharias e os móveis são opcionais e terrivelmente passé, e a última moda cenográfica é viver na bidimensionalidade de telas verdes ou azuis que são base de efeitos de computador, que tentam — mas dificilmente conseguem — replicar os espaços e texturas que caracterizam um edifício real. Para testemunhar tal fenômeno, não há melhor objeto de estudo que Mansão Mal-Assombrada, lançamento do Walt Disney Studios que almeja trazer às salas de cinema o misto de comédia e terror juvenil da atração homônima de seus parques de diversão. 

    Não é a primeira vez que a casa assombrada temática é adaptada para o cinema: 20 anos atrás, Eddie Murphy estrelou um longa de mesmo nome como um corretor de imóveis e patriarca que se envolve, ao lado de sua família, nos problemas dos mortos que habitam uma residência gótica no Sul americano. Na nova versão, o protagonista é Ben (Lakeith Stanfield), um físico de Nova Orleans que, após viúvo, é ostracizado da comunidade científica e passa a trabalhar com passeios turísticos sobrenaturais. Quando uma mãe solteira e seu filho se mudam para uma mansão assombrada nas redondezas da cidade, ele é recrutado pelo padre Kent (Owen Wilson) para ajudá-los, entrando em uma batalha entre vida e morte ao lado da médium Harriet (Tiffany Hadish) e o acadêmico Bruce (Danny DeVito) — que lá encontram espíritos vividos por Jamie Lee Curtis e Jared Leto.  

    A versão de Murphy foi feita com orçamento de 90 milhões de dólares, e, apesar de mal recebida pela crítica, conseguiu angariar mais de 180 milhões ao redor do globo, além de inúmeras reprises nos canais Disney e em emissoras abertas ao longo dos anos 2000, tornando-a parte da infância de qualquer um crescido naquela época — se não por uma dramaturgia excepcional, pelo carisma de seu protagonista e atenção dedicada à casa-personagem, repleta de passagens secretas, quartos exuberantes e elementos de decoração marcantes, desde os candelabros até a bola de cristal flutuante que encapsula a cigana Madame Leota (Jennifer Tilly). Duas décadas depois, a verba aumentou para mais de 157 milhões, mas a criatividade, o charme e até mesmo a escrita despencaram em qualidade. 

    Além de dois cômodos principais, todo o resto da mansão de 2023 é resultado de efeitos especiais que elaboram espaços vazios, pouco convincentes e desagradáveis ao olhar, que se assemelham ao cenário de videogames pouco inventivos e impossibilitam a percepção de qualquer geografia ou grandiosidade atmosférica. A decisão pode ser atribuída à direção mal idealizada, mas uma problemática estrutural é mais provável. Mansão Mal Assombrada está em desenvolvimento desde 2010, quando seria um projeto do visionário Guillermo del Toro, que canalizou sua visão para casas sanguinolentas em Colina Escarlate. Após uma década de conflitos criativos, o projeto foi repassado às pressas para a roteirista Katie Dippold em agosto de 2020. Extremamente rápido para uma produção deste porte, o processo demonstra pouco apuro artístico e muito interesse corporativo — o que suscita a lembrança de que, enquanto cenografistas são sindicalizados, profissionais de CGI não possuem regulamento trabalhista e podem ser utilizados ao bel-prazer de estúdios. 

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    Outra demonstração do sucateamento de Hollywood está no elenco de peso, que apesar de comprovadamente talentoso, exerce um trabalho constrangedor sobre um roteiro estufado e sem timing cômico, cuja incoerência e falta de energia já são mecânicas o suficiente para assinalar como podem ser os filmes feitos inteiramente por inteligência artificial. Destaca-se, em particular, um monólogo lamentoso e apelativo de Stanfield sobre a morte de sua esposa, que, entre soluços, faz menção à empresa de sorvetes Baskin-Robbins antes de encerrar sua fala com piadas de elevador sobre colesterol. 

    Com as produções da Marvel enfraquecidas e derivados de Star Wars concentrados no streaming, a Disney busca um novo caça-níqueis — e, nesse afã, recorre ao que já tinha à mão, em vez de se arriscar com produções originais, apelando a seus brinquedos na esperança de um sucesso como o atingido com Piratas do Caribe. Esquece-se, porém, que a sedução mundial da franquia de Jack Sparrow veio da impressionante visão artística de Gore Verbinski, e não de uma atração de parque nem ao menos conhecida pelo público estrangeiro que nunca foi ao Disney World. Se os futuros longas inspirados por atrações — como Torre do Terror e Space Mountain — seguirem o exemplo de Mansão Mal-Assombrada, ficará estabelecida uma leva de filmes muito engraçada: sem direção, sem cenário, sem intenção, sem humor, sem terror — sem nada.

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