O cinema reage: a volta por cima de Hollywood após inferno astral
Safra de filmes que concorrem ao Oscar no domingo, 10, comprovam a retomada artística
Em 2019, o cineasta Martin Scorsese, munido do respeito de uma carreira soberba de cinco décadas, provocou ninguém menos do que os fortões da Marvel. Num artigo controverso, o veterano argumentou que os filmes de heróis eram rentáveis, mas de narrativas limitadas. Não mereciam ser chamados de cinema e, sim, de parques de diversões. Levantou-se então a velha dúvida: afinal, o que é cinema? Scorsese ofereceu uma resposta longa e inspirada à questão: “Para mim, cinema é revelação — estética, emocional e espiritual. É sobre pessoas e a complexidade humana, suas contradições e sua natureza paradoxal, a qual é capaz de machucar e também de amar o próximo — até que, eventualmente, quem assiste se vê forçado a encarar a si mesmo”.
Feita no auge do sucesso dos valentões superpoderosos, a declaração robusta e emocionada de uma autoridade desse quilate acabou sendo interpretada por muitos, infelizmente, como um simples chororô de quem ficou para trás no negócio. A chamada sétima arte, aquela tratada como uma entidade sagrada por Scorsese, parecia naqueles tempos estar mesmo fadada à extinção, e até o hábito de ir ao encontro da velha magia da telona via-se ameaçado para sempre. Nos últimos anos, o cinema viveu um inferno astral devastador, que o encurralou em diferentes fronteiras, dos heróis repetitivos à competição com o streaming. O que parecia desafiador se transformou em enredo de filme-catástrofe quando a pandemia da Covid-19 fechou salas pelo mundo e atrasou todo o calendário de estreias. O vislumbre da volta à normalidade ainda foi manchado, no ano passado, por uma longa greve de roteiristas e atores em Hollywood.
Assassinos da Lua das Flores: Petróleo, morte e a origem do FBI – David Grann
Oppenheimer: O triunfo e a tragédia do Prometeu americano – Kai Bird e Martin J. Sherwin
Sobreviver, ainda bem, é uma arte na qual o cinema é versado, como a história já mostrou algumas vezes (veja quadro). Após chegar a ínfimos 2,1 bilhões de dólares de arrecadação mundial em 2020, o setor bateu, em 2023, nos 9 bilhões de dólares, um aumento de 300% em relação ao início da pandemia — mas ainda 20% abaixo dos valores pré-Covid (veja gráfico). Ainda assim, a recuperação impressiona, não só pelos muitos percalços, mas sobretudo pelos agentes desse impulso: pouco mais de 2,7 bilhões do total vieram de tramas espertas e acessíveis, feitas com técnicas artesanais, numa combinação equilibrada entre roteiro inteligente, atores inspirados e cenas admiráveis. São exemplos ilustres dessa empreitada o arrasa-quarteirão Barbie, maior bilheteria do ano passado, e o surreal Pobres Criaturas. Originais, ambos exibem com orgulho a exuberância de cenários criados do zero e feitos à mão, além de figurinos elaborados que funcionam quase como personagens paralelos da história — são, ainda por cima, tramas de teor feminista, num aceno às questões do mundo atual.
Boa parte dessas produções compõe a leva de filmes celebrada pelo Oscar deste ano, cuja cerimônia ocorrerá em Los Angeles no domingo 10, atestando o vigor da retomada artística e financeira da indústria. Um dos carros-chefes do renascimento de Hollywood é o colossal Oppenheimer, de Christopher Nolan. O filme que narra a história de J. Robert Oppenheimer, físico criador da bomba atômica, interpretado com vigor por Cillian Murphy, é uma resposta prática do cineasta a seu apego às telas grandes. Nolan é um velho crítico da Netflix e das demais plataformas de streaming — sua maior preocupação é quando estas se impõem como primeiro exibidor de lançamentos, à frente das salas de cinema, levando o espectador a ver filmes primeiro em TVs e até nas telas de celulares.
Perfeccionista, Nolan recriou com realismo o cenário do Projeto Manhattan, no deserto de Los Alamos, onde cientistas trabalharam no desenvolvimento das bombas. Em esforço hercúleo, ainda rodou tudo com câmeras Imax — ferramenta de maior resolução fotográfica do mercado, mas um trambolho que pesa mais de 100 quilos. Até a cena da detonação-teste da bomba, que poderia facilmente ter sido feita com computação gráfica, foi desenvolvida de forma artesanal: a explosão filmada num ambiente controlado usou uma mistura de gasolina, propano, magnésio e pó de alumínio para replicar o brilho e o formato do assustador cogumelo nuclear. Não é que Nolan seja totalmente avesso aos efeitos digitais — usados, sim, com parcimônia em seus filmes. Segundo prega o diretor, com razão, cenas computadorizadas são artificiais — logo, não provocam no cérebro humano a emoção que uma imagem mais próxima do real causa.
O Livro do Cinema – Vários autores
Detalhes como esse fazem toda a diferença e mostram que cinema bom e cuidadoso muitas vezes custa caro. Ciente disso, Martin Scorsese escolheu se aliar ao inimigo. Em busca de prestígio, a Netflix aderiu, pouco antes da pandemia, à exibição em pré-estreia de alguns de seus filmes nas salas de cinema antes do lançamento na plataforma. A decisão tornou as produções da empresa elegíveis ao Oscar — este ano, ela concorre com o filme Maestro na categoria principal — e ainda atraiu cineastas que são grifes no meio. Scorsese topou emprestar seu nome para o streaming como forma de fazer frente à grana alta que os grandes estúdios preferem investir nos super-heróis (eles de novo). Em 2019, fez O Irlandês com a Netflix e, em 2023, gastou 200 milhões de dólares da parceria entre Apple TV+ e Paramount para realizar o intrigante Assassinos da Lua das Flores, inspirado na história real de nativos americanos ricos usurpados por brancos, outro título aclamado nas premiações.
Mesmo visto com desconfiança por parte dos cineastas, o streaming se revelou um amigo valioso: mais que parceiro de produção, instigou mudanças no hábito do espectador, como a abertura para títulos em língua não inglesa — no Oscar deste ano, Zona de Interesse e Anatomia de uma Queda foram exemplos primorosos dessa flexibilização. E, para o bem e para o mal, se tornou casa de longas que se perdem em poucas salas de cinema: no Brasil, Ficção Americana entrou direto na plataforma Prime Video.
A regra é não ter regras: A Netflix e a cultura da reinvenção – Reed Hastings e Erin Meyer
Mas talvez o maior trunfo de que a Netflix e cia. mereçam se gabar é o de provar que a concorrência é uma dádiva para o consumidor. Para sobreviver, circuitos exibidores começaram a se reinventar, com salas melhores e telas de maior qualidade. A própria Netflix adquiriu um cinema para chamar de seu: a empresa comprou o tradicional Egyptian Theatre, em Los Angeles, um gigantesco anfiteatro centenário, que passou por uma reforma de 70 milhões de dólares.
Nessa toada, o baque da Covid nos exibidores começa a se desfazer. No Brasil, a queda drástica das salas em 2020 foi superada: segundo dados do portal Filme B, em 2023 foram computadas 3 706 salas ativas no país, 200 a mais que as 3 507 de 2019. Já o número de espectadores ainda não superou a marca pré-pandêmica. Em 2019, 177 milhões de ingressos foram vendidos por aqui, contra 118 milhões no ano passado, de acordo com a empresa de dados Comscore Movies. No caso do cinema nacional, as razões para o retorno lento vão além do período de exceção da quarentena e encostam na trava do governo de Jair Bolsonaro às políticas públicas de incentivo para o setor do audiovisual. “Diferentemente do mundo, que voltou aos sets em 2021, nós só retomamos a linha de produção no ano passado”, analisa Bruno Wainer, fundador da Downtown Filmes, principal distribuidora de longas brasileiros, que tem no currículo a popular franquia de comédia Minha Mãe É uma Peça. “Os sucessos nacionais são fundamentais para o crescimento do setor, assim como a presença dos grandes títulos de Hollywood.”
O horizonte é favorável, tanto para o cinema nacional, que voltou à ativa, quanto para o maior polo mundial de produção. Apesar do impacto que ainda se sentirá das greves no mercado americano, alguns títulos prometem fazer brilhar os olhos do público — e dos exibidores. O filme Duna — Parte 2 chegou aos 189 milhões de dólares em bilheteria no seu fim de semana de estreia, obtendo o melhor resultado desde Barbie, em julho do ano passado. A expectativa é de que a extravaganza no deserto do canadense Denis Villeneuve, protagonizada por Timothée Chalamet, ultrapasse a marca do bilhão. Ainda este ano, a agenda de estreias indica uma continuidade do cenário frutífero, aliando qualidade e rentabilidade. Furiosa, derivado da saga Mad Max, a distopia Guerra Civil, do diretor Alex Garland e da badalada produtora A24, Gladiador 2, novo épico de Ridley Scott, e a adaptação do musical Wicked são promessas aguardadas até dezembro. A magia do cinema está viva e pulsante. Como todo bom filme, o drama enfrentado nos últimos anos se encaminha para um final feliz e digno de muitos aplausos.
Publicado em VEJA de 8 de março de 2024, edição nº 2883