Petra Costa conta como Malafaia colaborou com filme exibido em Veneza
A diretora, que concorreu ao Oscar com ‘Democracia em Vertigem’, investiga em ‘Apocalipse nos Trópicos’ a influência dos evangélicos na política brasileira
Com Democracia em Vertigem, que concorreu ao Oscar de melhor documentário, Petra Costa investigou a crise da democracia brasileira a partir do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. No dia da votação, a cineasta e sua equipe presenciaram um grupo de fiéis, liderados pelo Cabo Daciolo, caminhando pelo salão e abençoando os assentos dos legisladores. O pastor iniciou um culto improvisado, entregou uma Bíblia para Petra e pediu que ela aceitasse Jesus em seu coração. A cena está em seu novo filme, Apocalipse nos Trópicos, que tem a Plan B de Brad Pitt entre seus produtores. O documentário foi exibido fora de competição no 81º Festival de Veneza, antes de participar do Camden Festival e do Festival de Cinema de Nova York, ambos nos Estados Unidos. O longa investiga a influência de evangélicos na política brasileira. Com sua produtora Alessandra Orofino, ela chegou à conclusão de que Silas Malafaia seria um bom guia. “Por meio dele, poderíamos compreender de forma mais pessoal e direta o estranho casamento que acontece diante dos nossos olhos, entre a extrema-direita e o fundamentalismo religioso.” Leia a seguir os principais trechos da entrevista:
A influência evangélica na política brasileira é pouco compreendida pelas pessoas, especialmente as que se consideram progressistas? Essa influência foi durante muito tempo mal compreendida pelas elites brasileiras, de todas as inclinações ideológicas, porque o fenômeno evangélico foi muito mais acentuado dentre as classes mais baixas e menosprezado pelos mais ricos. Muitos só se dariam conta da transformação que estava se dando no Brasil quando já se havia produzido uma nova elite que estava moldando os rumos do país. Fiquei impressionada com quão pouco material escrito ou filmado encontramos sobre o tema, dada sua importância. Mais recentemente há trabalhos muito pertinentes sendo publicados que nos inspiraram bastante.
Foi fácil conseguir entrevistar o pastor Silas Malafaia? Malafaia é definitivamente uma personalidade midiática. Ele não é de forma alguma uma pessoa reclusa e claramente gosta de falar com a imprensa e o público. Mas chegar ao ponto em que ele pudesse realmente ser sincero conosco – sobre suas opiniões políticas e as suas críticas aos seus próprios aliados, incluindo Bolsonaro – levou algum tempo. Primeiro, trouxemos para nossa equipe de colaboradores a Anna Virginia Baloussier, que cobre o movimento evangélico no Brasil há uma década e já entrevistou Malafaia diversas vezes. Ela nos apresentou e nós o filmamos – com e sem ela – por quase quatro anos. Sempre fomos muito claras sobre quem éramos. Nós o questionamos em entrevistas várias vezes. Mas Malafaia não é tímido em relação a conflitos e desacordos, e não esconde os seus pontos de vista; ele tem certeza de suas convicções. Ele também sabe que nossos valores são diferentes dos dele. A certa altura, sua esposa, Elizete, apontou para nossa câmera durante um culto religioso “só para mulheres” e disse: “mostre isso para suas amigas feministas! Diga a elas que as mulheres têm vaginas e os homens têm pênis”. Eles sabiam exatamente com quem estavam falando.
Na sua investigação, o que foi mais surpreendente? Para mim, se tornou bastante claro que, à medida que as forças de extrema-direita se tornam mais intrinsecamente revolucionárias, prometendo derrubar instituições, as forças mais progressistas foram colocadas na posição sempre muito impopular de defesa do status quo. Resignaram-se a ser gestores das crises recorrentes do capitalismo. Elas já não conseguem oferecer causas transcendentes. A religião e a espiritualidade não são as únicas formas de oferecer transcendência, mas todos nós precisamos de alguma transcendência nas nossas vidas, algo maior do que nós para aspirar e nos dar orientação. Até algumas décadas atrás, esse fogo estava nos movimentos progressistas, aqueles que derrubaram governos autoritários e teocráticos e apontaram para um futuro que seria melhor que o presente. Mas, recentemente, a democracia foi devorada por um capitalismo sem freios. E as forças progressistas, sequestradas por essa lógica, já não conseguem imaginar um futuro fora disso.
Qual a influência do movimento evangélico dos Estados Unidos no movimento evangélico brasileiro? Nossa equipe de investigação, liderada pelo pesquisador uruguaio Nicolas Iglesias, encontrou um verdadeiro tesouro de documentos que provam como os serviços de inteligência dos EUA estavam profundamente preocupados com o impacto que a Teologia da Libertação (movimento da Igreja Católica voltado à justiça social) poderia ter na América Latina e procuraram ativamente diferentes aliados para combatê-la. Por fim, o próprio Vaticano agiu para calar a Teologia da Libertação. Ao mesmo tempo, organizações evangélicas norte-americanas, como “The Family”, começaram a enviar missionários ao Brasil, alguns deles com a missão deliberada de converter deputados e outros segmentos da elite política. Quando o televangelista estadunidense Billy Graham veio ao Rio de Janeiro, em 1974, para uma “Cruzada” que durou vários dias, seus sermões foram transmitidos para 1.500 municípios, em obediência a ordens diretas da ditadura militar.
Qual sua visão sobre a relação do ex-presidente Jair Bolsonaro com o movimento evangélico? O período de maior expansão do movimento evangélico no Brasil ocorreu durante os anos de boom econômico do país sob a administração do PT, particularmente de 2003 a 2012. O PT se aliou a vários líderes evangélicos, facilitando o acesso a emissoras de rádio e televisão em todo o país. Essa aliança terminou em 2011, quando o PT pressionou para aprovar no Congresso uma lei para criminalizar a homofobia. Silas Malafaia organizou um protesto massivo em frente ao Congresso Nacional e ao Supremo Tribunal Federal contra essa lei. Ele conta que, a partir de então, passou a comandar um esforço concertado para influenciar a política de forma mais direta. Naquele momento, uma nova visão teológica estava invadindo o Brasil.
Que visão teológica é essa? Trata-se da Teologia do Domínio. Ela propõe que os cristãos devem controlar todos os aspectos da sociedade, da vida familiar à economia, chegando até o próprio governo. O foco estava em disputar e assumir o controle sistemático dos três poderes da República. Para mim a maior revelação do filme foi descobrir o impacto que essa Teologia do Domínio já está tendo sobre a política brasileira. Depois da brecha criada pela crise política de 2016, esses líderes religiosos declararam guerra ao PT. Passaram a implementar agressivamente seus planos “dominionistas” e foram decisivos na eleição de Jair Messias Bolsonaro. Mas esse avanço já estava ocorrendo antes dele e continuará ocorrendo depois dele. Bolsonaro era visto e descrito por essas lideranças como um “vaso vazio”, um mero instrumento de Deus. Se ele for carta fora do baralho, outros serão considerados ungidos ou escolhidos para governar.
Por fim, como analisa a influência dos evangélicos na política e na democracia? O fim da separação entre igreja e Estado é um risco para a democracia, independentemente da fé em questão. No Brasil, neste momento, quem clama mais publicamente por um estado teocrático são lideranças cristãs – sobretudo evangélicos e alguns segmentos mais fundamentalistas e reacionários da Igreja Católica. Em outros países do mundo, a aliança entre autoritarismo, extrema-direita e fundamentalismo religioso se dá na base de outras religiões. É o caso de Israel e da Índia, por exemplo, que também têm lideranças de extrema-direita, com vocação autoritária e discurso extremamente alinhado ao fundamentalismo religioso – e que, no entanto, não são países cristãos.
Acredita que o filme evidencia uma oposição entre visões de democracia, com a vontade da maioria de um lado, e a proteção das minorias do outro? Sim. Há um ataque frontal à democracia por parte de movimentos que querem desconsiderar qualquer proteção ou direitos das minorias. Isso é algo que Silas Malafaia defende abertamente em uma das principais cenas do filme. De acordo com essa visão, se um país tem uma maioria cristã, como o Brasil e os Estados Unidos, então essa maioria tem não apenas o direito, mas o dever de impor a sua vontade sobre as minorias religiosas. Levada ao extremo, essa posição implica necessariamente uma tomada de poder. É por isso que estes movimentos afirmam sempre ter o apoio da maioria, mesmo quando não têm. É por isso que não aceitam a derrota nas eleições, por exemplo. Não é de surpreender que alguns dos seus ataques mais cruéis sejam dirigidos às instituições cujo papel é proteger os direitos das minorias ou impor controles ao seu poder.
Como avalia o governo Lula? Entendo que seguimos vivendo um momento político difícil no Brasil. As tensões entre os poderes continuam muito altas, as forças de extrema-direita continuam fortes, e o Congresso é extremamente conservador. O governo federal não é perfeito, mas parece ser comprometido com a redução de desigualdades, com o fomento à cultura, com trazer o Brasil de volta para um protagonismo no mundo. Agora, há desafios que transcendem qualquer governo, sobretudo em um contexto global de capitalismo voraz e cada vez menos regulado e de uma revolução na comunicação que mudou de forma definitiva a maneira como nos comportamos e nos relacionamos uns com os outros, nem sempre para melhor. Acho ainda que a esquerda inteira vive uma crise de discurso, de visão de futuro, por causa desse capitalismo global que acaba sequestrando a democracia e deixando a esquerda muitas vezes em uma posição de defesa do status quo. Se não formos capazes de articular uma saída, vai ser muito difícil competir com discursos mais extremistas, inclusive o discurso de ódio, que prometem soluções simples e ilusórias para problemas reais.
Achava que ia fazer tantos documentários sobre política? O meu interesse era mais em um universo intimista, psicológico. A sensação de que estávamos vivendo tempos de muita instabilidade me instigou a olhar mais para a política – porque, quando vivemos esse tipo de situação, a política passa a nos atravessar mais, de uma forma que é também pessoal e afetiva. Meus documentários seguem sendo sobre isso: sobre trauma, sobre jornadas pessoais e subjetivas de aprendizado e de se dirigir ao outro para compreendê-lo, mas isso não se dá em um vácuo. Traumas não só pessoais, mas coletivos, e qualquer tentativa de existir politicamente em sociedade pressupõe não só respeito, mas, em alguma medida, interesse genuíno pelo outro, pelo diferente.