‘Pobres Criaturas’, a bela (e estranha) nova viagem de Yorgos Lanthimos
Diretor do filme fala a VEJA sobre Emma Stone e como alimenta uma criatividade constante: 'Não gosto da zona de conforto'
Bella é uma garota insolente. Suas malcriações são típicas das crianças que ainda desconhecem os códigos da civilidade, como o uso desmedido da força, interações físicas inapropriadas e hábitos escabrosos à mesa durante as refeições. Quando suas vontades não são atendidas, ela faz birra e quebra objetos. Não à toa, sua babá está sempre de cara amarrada. Mas Bella não é uma criança qualquer: a jovem de atitudes infantis vive no corpo de uma mulher de 20 e poucos anos. “Bella é um experimento”, anuncia, orgulhoso, o cirurgião Godwin Baxter (Willem Dafoe, impecável) no filme Pobres Criaturas (Poor Things; Irlanda/Reino Unido/Estados Unidos; 2023), que chega aos cinemas na quinta-feira, 1º de fevereiro, carregando nada menos do que onze indicações ao Oscar (veja o quadro).
Nova empreitada do cineasta grego Yorgos Lanthimos — responsável por títulos de criatividade visual e narrativa notáveis, como a “dramédia” de época A Favorita —, o longa traz Emma Stone em uma atuação deliciosamente bizarra na pele de Bella. A moça é fruto de um dos muitos testes feitos pelo médico a quem ela chama de “Deus”: Godwin gosta de unir pedaços de diferentes animais criando espécies únicas, como um cachorro de estimação com o corpo de uma galinha. No caso da jovem, ele ressuscitou uma mulher adulta com o implante de um cérebro de criança — um aceno explícito ao clássico Frankenstein, ou o Prometeu Moderno (1818), de Mary Shelley.
Poor Things: Now an award-winning major film
Pobres Criaturas se baseia no livro de mesmo nome, lançado em 1992 pelo autor escocês Alasdair Gray (1934-2019). Fã de literatura gótica e, claro, do monstrengo criado com restos humanos pelo cientista Victor Frankenstein, Gray fez de Bella uma alegoria para o desejo de liberdade dos reprimidos — ele, aliás, era um proeminente defensor da independência da Escócia. O diretor grego se encantou com o livro de Gray nos anos 1990 e o encontrou pessoalmente para pedir os direitos de adaptação. A afinidade entre eles foi imediata: ambos compartilhavam do apreço por desafiar gêneros e pela criação de histórias que passam longe do convencional. “Minha motivação é criar constantemente, sem medo de errar”, disse Lanthimos a VEJA (leia mais na entrevista abaixo).
Tratada como prisioneira pelo “pai”, Bella amadurece rápido, diminuindo a defasagem entre mente e corpo, movida pela curiosidade voraz da adolescência. Ao contrário de Frankenstein, que persegue seu criador para se vingar por ter sido trazido à vida e, em seguida, abandonado por causa de sua monstruosidade, Bella consegue se livrar das amarras de Godwin e sai de casa sedenta por aprendizados — especialmente pelos recém-descobertos prazeres carnais. Sem a educação pudica incutida às meninas, a moça choca a sociedade conservadora do século XIX e os muitos homens que tentam dominá-la. Tal postura daria orgulho à família da autora de Frankenstein: a inglesa Mary Shelley era filha do filósofo e precursor do anarquismo William Godwin (1756-1836) — sobrenome dado ao personagem de Dafoe — e da primeira feminista, Mary Wollstonecraft (1759-1797).
Frankenstein: O clássico está vivo!
Nas mãos de Lanthimos, a trama irônica e sensual ganha formas voluptuosas: cenários foram construídos do zero para replicar o encantamento de Bella ao conhecer outros países, entre os quais Portugal e França. Quando ela tem sua primeira relação sexual, a fotografia preto e branco que a acompanha na fase infantil explode em cores saturadas e quentes.
As mesmas doses de ousadia e inclinação pelo novo se veem em Emma Stone, atual queridinha do cineasta. Despida da vaidade que assola as belas atrizes de Hollywood, Emma fez um trabalho primoroso ao lado de Lanthimos em A Favorita, como a amante da rainha Anne, vivida por Olivia Colman. A parceria se estendeu ao curta-metragem experimental mudo e em preto e branco Bleat (“Lamúria”, em tradução livre), de 2022, rodado na Grécia — e um terceiro longa da atriz com o diretor (e de novo com Willem Dafoe no elenco) já foi rodado e está previsto para estrear ainda neste ano. Por enquanto, a amizade prolífica e criativa vem colhendo louros nas premiações com Pobres Criaturas, uma pérola incomum e marcante da história do cinema.
Bella desperta para a urgência de ser livre motivada pelo bon vivant Duncan (Mark Ruffalo, também ótimo). A trajetória começa com o deslumbramento pelo próprio corpo e suas possibilidades, passando pela emoção ao se deparar com a arte e com a grandiosidade do mundo para além de sua janela. Eventualmente, os horrores da humanidade mancham sua idealização: não tarda para que ela se veja diante da crueldade, da miséria e das dores dos desafortunados. A quebra da inocência traz a princípio amargura, mas desemboca na busca existencial sobre quem ela é e qual seu lugar neste universo. Uma trajetória de alegrias, decepções e superações comum a qualquer mortal — e ainda mais instigante para uma mulher nascida sob o signo da liberdade radical.
“Não gosto da zona de conforto”
O cineasta Yorgos Lanthimos falou a VEJA sobre como mantém sua criatividade em alta e comentou os bastidores do novo filme, Pobres Criaturas.
O que o atraiu no livro de Alasdair Gray a ponto de querer adaptá-lo? A mitologia do Frankenstein já foi explorada de diversas formas, mas fiquei impressionado com essa perspectiva feminina muito particular que o autor criou.
Em tempos que exigem “lugar de fala” para tratar de certos temas, como foi criar uma personagem feminista sendo um homem? Acompanhar um personagem tão livre, que pode conhecer o mundo como bem quiser, é fascinante, seja lá qual for seu gênero. Mas sei que essa liberdade é mais rara entre as mulheres. Como sou familiarizado com personagens masculinos, pude trazer esse olhar para o entorno da Bella.
Em que sentido? É importante reconhecer o papel que o homem desempenha na criação de uma sociedade tão restrita para mulheres. Então, apliquei essa reflexão ao filme.
Mulheres que correm com os lobos
Este é seu segundo longa com Emma Stone — e ela está cada vez mais ousada e despida de vaidades. Como tem sido a parceria? Eu não gosto da zona de conforto, pois nada bem-feito sai daí. Emma não tem medo de arriscar, assim como toda a equipe que se abriu para uma experiência desafiadora, da construção dos cenários às atuações originais. Tento ousar para não ser repetitivo — e levo isso para os atores.
O senhor virou uma grife do cinema autoral (e absurdo) em Hollywood. Sente-se pressionado a manter um padrão? Minha motivação é criar constantemente enquanto conto histórias, sem medo de errar. Não me importaria em ser criticado por não atingir algum tipo de expectativa. O importante é sempre tentar algo novo, especialmente o que parece impossível de ser feito.
Publicado em VEJA de 26 de janeiro de 2024, edição nº 2877