Um grupo de guerreiros fremen observa a distância Paul Atreides (Timothée Chalamet) fincar na colina um objeto que provoca batidas sincopadas no chão. O objetivo é atrair os gigantes vermes de areia que ele aprendeu a controlar como herdeiro de uma das casas mais nobres do Imperium. É um momento decisivo: nascido e criado no idílico planeta Caladan, Paul é visto por muitos como um novo Messias, mas uma parcela de céticos o despreza. Minutos depois, uma imensa quantidade de terra se desloca em direção ao rapaz, sugando-o para o abismo. Quando ele ressurge cavalgando a monstruosa criatura, é imediatamente aclamado como um deus. A cena é só uma dentre as muitas passagens extasiantes de Duna — Parte Dois, já em cartaz nos cinemas. Com roteiro que equilibra de forma virtuosa tensão, emoção, humor e filosofia, embalados por uma fotografia e uma trilha que impressionam, a sequência oferece bem mais que o estupor contemplativo do filme inicial de 2021. Nas 2h45 de duração, a franquia do diretor Denis Villeneuve devolve ao cinema de fantasia um frescor que andava sumido desde O Senhor dos Anéis (2001) — distanciando-se de vez de qualquer comparação com o chatérrimo filme dos anos 1980 com Sting e direção de David Lynch.
Adaptação do clássico da ficção científica escrito por Frank Herbert em 1965, a história de Duna é ambientada num futuro distante, onde um império intergaláctico feudal domina todo o universo conhecido. Mas as atenções estão voltadas para Arrakis, um imenso e desértico planeta. O local abriga “a especiaria”, raríssimo mineral alucinógeno que expande as capacidades cognitivas dos humanos, permitindo-lhes fazer os cálculos necessários para navegar entre os planetas, numa era futura em que a inteligência artificial foi banida. O papo nerd serve só de pano de fundo para uma reflexão exemplar sobre os dilemas de um mundo emparedado entre o totalitarismo e o fundamentalismo religioso — em resumo, diante da triste opção entre um mal e outro.
Em 1979, ao falar sobre sua saga, Frank Herbert alertou sobre a perigosa tendência humana de confiar as decisões a um líder carismático: “A lição final de Duna é: cuidado com os heróis. É muito melhor confiar em seu próprio julgamento e em seus próprios erros”. O comportamento ambíguo de Atreides no novo filme ilustra tais riscos. Quando assume finalmente o comando de seu povo, após relutar em ser sua liderança espiritual, ele convoca as pessoas para uma “guerra santa” — e não para livrá-las da opressão.
Duna — Parte Dois é, acima de tudo, uma prova eloquente (talvez a maior desde a pandemia) de que o cinema na tela grande está vivíssimo. A música épica, os planos abertos e as batalhas são poesia visual pura. Mesmo quando somos transportados para o monocromático planeta dos Harkonnens, liderados pelo Barão (Stellan Skarsgård) e os sobrinhos Beast Rabban (Dave Bautista) e Feyd-Rautha (Austin Butler), ou para Kaitan, capital do Imperium, onde reinam Shaddam IV (Christopher Walken) e sua filha, Irulan (Florence Pugh), o encanto se mantém. Entre tantas atuações acima da média, é Zendaya, no papel da guerreira Chani, par romântico de Chalamet, quem arrasa nas cenas de ação. Não bastasse ser espetacular, Duna 2 tem uma atriz que é um espetáculo em si.
Publicado em VEJA de 1º de março de 2024, edição nº 2882