‘Top Gun: Maverick’: Tom Cruise vive ressaca do patriotismo nos ares
Se no primeiro filme as cenas eram feitas por dublê, agora o astro desfila habilidades físicas invejáveis e a capacidade de pilotar caças
Trajando um imponente uniforme da Marinha e condecorações no peito, o comandante conhecido como Viper descrevia para jovens pilotos a razão da existência do Top Gun, programa de treinamento americano para aviadores navais de elite. Em 1986, sob a ressaca do Vietnã e da Guerra Fria, os Estados Unidos não estavam em conflito direto com nenhum país. Mas era preciso “estar sempre pronto”, ressaltava o militar vivido por Tom Skerritt. Desenhava-se ali o contorno que pautaria a ação de Top Gun: Ases Indomáveis (1986): em um mundo sem inimigo definido, a belicosidade americana deveria manter sua supremacia — nem que fosse só no campo da ficção.
Caso raro numa indústria que adora franquias, o arrasa-quarteirão levou 36 anos para ganhar, enfim, uma sequência: na quinta-feira 26 chega aos cinemas Top Gun: Maverick, com Tom Cruise de novo no papel do piloto Pete “Maverick” Mitchell. Aos 59 anos, o ator deixa sua versão de 20 e poucos no chinelo. Se no primeiro filme as cenas eram feitas por dublê, aqui Cruise desfila habilidades físicas invejáveis e a capacidade de pilotar caças — o astro conduz de verdade as aeronaves supervelozes.
Curiosamente, a demora da continuação estava diretamente ligada ao conturbado clima político dos Estados Unidos nos últimos anos. A ideia do “herói americano” foi esmorecendo conforme se acumularam casos de depressão e estresse pós-traumático entre os veteranos de guerra. Nos anos 1990, o cinema lançou títulos exemplares em sua crítica à glamorização dos conflitos armados. Entre eles, Nascido em 4 de Julho (1989), uma dura crítica do diretor Oliver Stone protagonizada por ele mesmo, Tom Cruise. Na época, o ator afirmou que uma continuação de Top Gun seria uma “irresponsabilidade”. “Top Gun foi visto como um filme da direita para promover a Marinha. Mas aquilo não é a guerra: Top Gun é um parque de diversões que não tem nada a ver com a realidade”, disse então Cruise, um democrata declarado.
Feito com aval do Pentágono, o Top Gun original foi, de fato, uma propaganda militar de luxo. O governo americano liberou navios, aviões e pilotos profissionais para o filme, tendo em troca o direito de palpitar no roteiro — além de botar estandes nas saídas dos cinemas, para o alistamento de jovens inebriados pela adrenalina na tela. Na sequência, o clima é outro. Maverick, o piloto rebelde, abandona o patriotismo vazio para abraçar outras causas: ainda traumatizado com a perda do melhor amigo, Nick Goose (Anthony Edwards), morto em um treinamento no primeiro filme, ele terá de reaprender habilidades sociais básicas, como a confiança, o trabalho em equipe e a importância da família.
Top Gun – Edição de Colecionador (Duplo com Imã)
Parece piegas, mas o filme reflete um sentimento real na sociedade americana — tanto que Maverick não está sozinho. Uma nova safra de produções sobre pessoas “quebradas” pela guerra despontou na era pós-Trump, mostrando a vida de ex-soldados que passaram pelo Iraque e pelo Afeganistão. Somou-se a isso algum rescaldo do Vietnã: o longa Destacamento Blood (2020), de Spike Lee, e a série dramática This Is Us, atualmente em sua sexta e última temporada, trazem veteranos marcados pela experiência desnecessária do confronto na Península da Indochina.
Exemplar da nova safra, Dog — A Aventura de uma Vida, em cartaz nos cinemas, é uma dramédia saborosa protagonizada e codirigida por Channing Tatum, um ex-soldado sem perspectivas após a Guerra do Iraque que deseja voltar ao combate. Um traumatismo craniano sofrido no front impede Briggs (Tatum), entretanto, de vestir a farda novamente. Então, ele aceita uma missão aparentemente simples para provar seu valor: é incumbido de levar Lulu, um pastor-belga militar, ao enterro de seu dono, um colega do Exército que cometera suicídio. Violenta e ansiosa, Lulu, uma cachorra treinada para matar seres humanos, está tão ou mais traumatizada que Briggs. A viagem logo se torna uma terapia para ambos.
Tom Cruise: Biografia Não-Autorizada
Em Top Gun: Maverick, o personagem de Cruise também tem pontas soltas a resolver. O piloto vive de forma solitária desde a morte de Goose — uma desculpa para a ausência de seu par romântico de 1986, vivido por Kelly McGillis, que acusou a produção do novo filme de tê-la esnobado pela aparência envelhecida. Ele é convocado por Iceman (Val Kilmer, numa ponta emotiva; leia abaixo) para treinar uma nova geração de pilotos. Entre os jovens está Bradley “Rooster” Bradshaw (Miles Teller), filho de Goose, por quem Maverick desenvolve uma tensa ligação paternal. O drama é pano de fundo para a verdadeira graça de Top Gun: relacionamentos são complicados, mas ficam absurdamente divertidos quando acontecem entre ousadas acrobacias no céu.
O galã que sumiu de cena
Uma das exigências de Tom Cruise para voltar ao set de Top Gun era a presença de Val Kilmer, de 62 anos, no elenco. A dupla de rivais foi um tempero extra no filme de 1986 — e o sucesso fez deles galãs cobiçados, dando fim à era dos brucutus Sylvester Stallone e Arnold Schwarzenegger. A trajetória dos dois, porém, seguiu por trilhas distantes. Enquanto Cruise cresceu em popularidade e relevância, Kilmer chegou ao ápice em Batman Eternamente (1995) e logo ganhou o selo de “difícil”.
Honesto, o ator relembrou o passado profissional e familiar no ótimo documentário Val (2021), do Prime Video, da Amazon. Em um mosaico de cenas caseiras, filmadas por ele ao longo de quarenta anos, a produção destrincha desde dramas pessoais, como a morte de um de seus irmãos, até a explosão da fama e suas consequências. Dedicado, Kilmer começou na Broadway e almejava ser um ator de prestígio — plano afetado por suas manias e comportamento errático.
Diagnosticado em 2015 com um câncer de garganta, que lhe tirou a voz e minou sua aparência, Kilmer lamenta viver da nostalgia, ganhando dinheiro em eventos de fãs. Acabou sendo recompensado agora com o presente de sua breve mas marcante participação em Top Gun: Maverick.
Publicado em VEJA de 25 de maio de 2022, edição nº 2790
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