‘Trem-Bala’ consagra um Brad Pitt soltinho na tela – e fora dela
Ator coroa sua boa fase cômica no cinema — humor que o salvou também de seu conturbado divórcio e do cancelamento
Sob o codinome Joaninha, um criminoso conversa no telefone com a mulher que o contratou: ele deve entrar em um trem-bala no Japão, pegar uma maleta e sair na estação seguinte. Antes do embarque, a voz no celular recomenda que ele leve consigo uma arma. Joaninha se recusa. Afinal, ele é um novo homem, que acredita no poder da paz e repete frases clichês motivacionais como “quando uma porta se fecha, uma janela se abre”. Dentro do trem, o roubo não é tão simples — e, ao contrário dele, outros passageiros de índole duvidosa estão armados até os dentes. Estrela do filme de ação cômico Trem-Bala (Bullet Train, Estados Unidos/Japão, 2022), em cartaz nos cinemas, Joaninha é interpretado por um inspiradíssimo Brad Pitt. Aos 58 anos, o ator encontrou no personagem um espelho de seu eu na vida real: um homem de humor pungente tentando acertar as contas com o passado.
Galã romântico nos anos 1990 e bad boy sexy na década de 2000, Pitt agora faz a linha tigrão irônico. Ele aprendeu a rir de si mesmo e viu que a masculinidade não é oposta à vulnerabilidade — nem precisa estar presa a padrões caducos: até usou saia na pré-estreia do filme. O resultado dessa fase soltinha do astro vem se refletindo em papéis saborosos e num resgate notável da vala comum da cultura do cancelamento.
Como Joaninha, Pitt quer ser um homem melhor — único caminho possível para sua redenção após os escândalos de 2016. Naquele ano, uma briga em família numa viagem em um jato particular culminou no divórcio com Angelina Jolie. A atriz o acusou de beber demais e de ter agredido o filho mais velho da prole de seis adolescentes. Uma investigação policial liberou Pitt da acusação. O divórcio litigioso, porém, não chegou ao fim: uma vinícola de 160 milhões de dólares na França ainda causa atrito entre os dois.
Para sair do mar de fofocas, Pitt escolheu a honestidade. A começar pelo modo de tratar dos vícios. O ator revelou que desde a faculdade não se lembrava de um único dia em que não estivesse sob efeito do álcool ou da maconha. O incidente no avião o levou a buscar ajuda. Para exorcizar seus demônios, Pitt fez terapia e entrou para os Alcoólicos Anônimos. Ele notou em si uma repetição do comportamento de seu pai e da comunidade pobre e conservadora onde cresceu, no estado do Missouri.
A sinceridade do ator envergonhou os críticos que questionavam se ele era bom pai ou bom marido. Pitt, então, deu sua tacada mais certeira: provou de vez que é um ótimo ator. O divórcio saiu das manchetes para dar espaço aos elogios a Era Uma Vez em… Hollywood, tragicomédia de Quentin Tarantino que garantiu a Pitt seu primeiro Oscar por atuação, como coadjuvante, em 2020. Seus agradecimentos em vários prêmios (e foram muitos) conquistaram as redes pelo tom sincerão. “Preciso adicionar isso ao meu perfil do Tinder”, disse ao levar o SAG Awards.
Pitt poderia se gabar de outros feitos. Pouco vocal em assuntos políticos se comparado a colegas como Leonardo DiCaprio, ele soma doações milionárias para causas sociais e ainda se destaca na luta antirracista. Sua produtora vem viabilizando filmes e séries feitos com atores e diretores negros, entre eles os aclamados Selma, Moonlight e 12 Anos de Escravidão — este lhe garantiu um Oscar de melhor filme como produtor. Na frente das câmeras, Pitt agora prefere papéis despretensiosos. Trem-Bala é um exemplo palpitante. Com lutas que transbordam testosterona, humor sagaz, elenco estrelado e uma intimidante vilã juvenil vivida por Joey King, a adaptação do livro do japonês Kotaro Isaka é entretenimento puro. Brad Pitt se diverte, e a gente idem.
Publicado em VEJA de 10 de agosto de 2022, edição nº 2801
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