‘Triângulo da Tristeza’: filme faz retrato mordaz dos super-ricos
No longa sueco, indicado ao Oscar, um cruzeiro de ricaços tem destino trágico
O modelo Carl (Harris Dickinson) está ficando velho — ao menos para o implacável mundo da moda. Aos 24 anos, o rapaz de olhos azuis expressivos e cabelo loiro alinhado vai a um teste no qual deve andar de um lado para o outro sem camisa, diante de um grupo que vai decidir se o contrata para um desfile. Um dos juízes sugere que Carl precisa de um pouco de Botox para aliviar a tensão no que ele chama de “triângulo da tristeza” — a área do rosto acima do nariz e entre as sobrancelhas. A região fica marcada com o tempo ao se contrair em razão da raiva, da desconfiança e do medo. Nenhuma grife que se preze vai querer em sua passarela alguém que passe por emoções desagradáveis: afinal, gente jovem, rica e bonita não sofre, não é? No filme Triângulo da Tristeza (Triangle of Sadness; Suécia; 2022), em cartaz nos cinemas e indicado ao Oscar, os ricaços sofrem um bocado — para delírio e até alegria do público.
O filme deu ao sueco Ruben Östlund sua segunda Palma de Ouro no Festival de Cannes – ele já fora premiado em 2017 com The Square: a Arte da Discórdia. Assim como naquele drama sobre os absurdos do mercado de arte, Östlund se vale aqui da ironia cortante para examinar outro universo: o dos super-ricos que escancaram seus excessos e sua falta de conexão com o mundo real. Triângulo da Tristeza reforça com louvor uma leva de filmes e séries que observam de perto a classe AA+, como os afiados The White Lotus, O Menu e Succession.
Dividida em três volumes, a trama começa com a saga por emprego de Carl e sua relação instável com a top model Yaya (Charlbi Dean). No mercado da moda, as mulheres valem muito mais que os homens, o que deixa Carl na posição incômoda de submissão. Yaya sabe disso e sugere que a relação entre eles só vai durar enquanto for lucrativa para suas parcerias nas redes sociais. Um de seus patrocinadores leva o casal de modelos influencers para um cruzeiro de luxo, onde eles conhecem gente rica de verdade — do tipo que não vive à base de permutas. Entre eles, a família de um oligarca russo e um adorável casal de idosos ingleses que fizeram fortuna vendendo armas para países em guerra. Do lado oposto dos privilegiados, os tripulantes atuam como babás dispostas a mimar os ricos excêntricos. A exceção é o comandante vivido por um excelente Woody Harrelson — bêbado a viagem toda, o capitão é um comunista de meia-tigela que despreza os magnatas ao redor.
Claro que a viagem caótica desemboca em tragédia: na terceira e última parte do filme, um naufrágio leva ricos, pobres e influenciadores a uma mesma ilha remota despida de glamour. É a hora de a camareira Abigail (a filipina Dolly de Leon) brilhar: única capaz de pescar e cozinhar, ela inverte as relações de dependência, levando bilionários a implorar por sua amizade — e por um naco de peixe ensopado.
Em seu enredo, Östlund flerta com uma ideia cara a pensadores como o francês Michel Foucault (1926-1984): a de que o poder não é estático ou monolítico, mas uma força dinâmica que muda de mãos ao sabor das circunstâncias. Dessa forma, Triângulo da Tristeza adiciona uma reflexão apimentada à sátira: dinheiro e poder nem sempre andam juntos, e quando se abre um fosso entre as duas coisas até o mais caro Rolex pode não valer nada nas relações pessoais. Ainda mais se os ricos em questão forem, como no filme, tão pobres de espírito.
Publicado em VEJA de 22 de fevereiro de 2023, edição nº 2829
*A Editora Abril tem uma parceria com a Amazon, em que recebe uma porcentagem das vendas feitas por meio de seus sites. Isso não altera, de forma alguma, a avaliação realizada pela VEJA sobre os produtos ou serviços em questão, os quais os preços e estoque referem-se ao momento da publicação deste conteúdo.