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‘Um Herói’: o milagre de fazer bom cinema no repressor Irã dos aiatolás

Filme explora as nuances entre o certo e o errado e mira um país que recentemente apertou o cerco contra cineastas

Por Raquel Carneiro Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 11h19 - Publicado em 30 jul 2022, 08h00

A simpatia e a timidez de Rahim (Amir Jadidi) são perceptíveis a quilômetros de distância. Por isso, é uma surpresa quando, logo no início de Um Herói, em cartaz nos cinemas (Ghahreman, Irã/França, 2021), Rahim é questionado por um conhecido se saiu de vez da cadeia. “Não, é só por dois dias”, responde ele, constrangido. Rahim, um ex-empresário falido, é sentenciado à prisão por não conseguir pagar uma dívida, conforme reza uma draconiana lei do Irã. Em seus dois dias de condicional, ele tenta renegociar com o credor: se o homem o perdoar, promete um adiantamento robusto e o restante em parcelas, assim que arranjar um emprego. A entrada será quitada com ajuda da namorada de Rahim, que encontrou uma bolsa com moedas de ouro na rua.

O Irã sob o chador

Tomado pela consciência — e pela dificuldade de quitar o valor total —, ele se arrepende da oferta e sai em busca do dono da bolsa. A ação viraliza e Rahim logo se transforma em um herói altruísta e exemplo de cidadão honesto e religioso. Um circo se instala ao redor dele, com entrevistas na TV e a exposição exagerada de seu filho deficiente. Quando detalhes sobre a dívida e a tal da bolsa surgem, entre verdades e fake news espalhadas pelas redes, o pedestal sobre o qual Rahim foi colocado desmorona.

Asghar Farhadi: Life and Cinema

O drama do protagonista exprime a visão de mundo do diretor iraniano Asghar Farhadi — vencedor de duas estatuetas de melhor filme internacional no Oscar, feito que o iguala a mestres do cinema como o italiano Federico Fellini (1920-1993) e o sueco Ingmar Bergman (1918-2007). Para Farhadi, a humanidade não se resume a ideias maniqueístas: ninguém é totalmente vilão ou mocinho, e os donos da moral e dos bons costumes se nutrem da hipocrisia. Ao explorar essas nuances, o cineasta desfere alfinetadas leves, mas contundentes, no opressivo sistema judiciário iraniano. O conjunto de leis pautado pelo Alcorão oprime especialmente mulheres e pobres — e as sentenças podem chegar a enforcamento público, inclusive de menores de idade. Em certo ponto do filme, o caso de Rahim parece irrelevante perto do destino de uma mulher que, com sua filha pequena, tenta levantar doações para reverter a sentença de morte do marido — o que, sim, pode ser resolvido com dinheiro em alguns casos.

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Nesse meio tóxico, Farhadi se equilibra ao retratar dilemas sociais com o cuidado para não irritar as autoridades. É uma precaução legítima. Neste mês, o Irã fechou o cerco contra cineastas críticos ao governo. Três foram presos, entre eles o também aclamado Jafar Panahi, do premiado Táxi Teerã. O governo alega que ele foi detido para cumprir uma pena antiga, de seis anos de reclusão, por “propaganda contra o sistema” — sentença pela qual pagara uma fiança em 2010. Em ditaduras, a Justiça nunca é cega.

Publicado em VEJA de 3 de agosto de 2022, edição nº 2800

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