Um menino brinca à beira mar. De casa, a mãe grita: “Drecken, não é para você comer nada que encontrar aí, não quero nem saber o que é”. Drecken come plástico. Sentado no vaso do banheiro, ele recolhe a lixeira do chão e começa a morder, crocante que nem biscoito. A mãe o observa da porta e, assim que ele dorme, sufoca-o com um travesseiro. A cena chocante é uma entre várias desenhadas pelo polêmico cineasta canadense David Cronenberg, 79 anos, em Crimes do Futuro, seu primeiro filme desde Mapas para as Estrelas, de 2014, e um dos mais esperados da 75ª edição do Festival de Cannes. Algumas pessoas tinham passado mal em projeções anteriores, então se esperava muita gente saindo da sala antes do fim da sessão. Com o estômago, por assim dizer, mais forte, boa parte do público do festival aguentou firme, mas alguns desistentes foram vistos saindo ao fundo.
A morte de Drecken é um efeito colateral de um mundo no qual a evolução humana surpreende. No futuro imaginado por Cronenberg para o filme, as paredes precisam de uma mão de tinta, as pessoas não sentem mais dor, algumas comem materiais estranhos como plásticos, órgãos extras surgem de forma natural no corpo humano, cirurgias são feitas no meio da rua, e todo mundo quer ser um artista performático. Os protagonistas Saul Tenser (Viggo Mortensen) e Caprice (Léa Seydoux) estão acima disso: são estrelas. Multidões vêm conferir seus shows. Toda vestida de vermelho, Caprice opera a extração de um órgão do corpo de Saul, tatuando-o com sua assinatura. A sensualidade da sessão é a deixa para a tese de que, nesse mundo, a cirurgia é o novo sexo. Timlin (Kristen Stewart), a funcionária burocrática do escritório para registro de novos órgãos, sugere exatamente isso ao ouvido de Saul. Nas ruas ou entre quatro paredes, mulheres se deixam cortar, ofegantes. As mais bonitas criam padrões de fratura exposta no meio do rosto. É a beleza interior, literalmente, que conta, inclusive em concursos clandestinos: o novo belo reside em vísceras expostas. Para além das cenas explícitas, um desconforto inesperado: os personagens entoam diálogos abundantes, com uma linguagem rebuscada, entre conceitos que vão do significado da arte à evolução da espécie humana.
“Como cineasta, estou sempre filmando o corpo”, disse Cronenberg à imprensa no evento do qual VEJA participou. Quase octogenário – “sou mais velho do que o Festival de Cannes” –, o cineasta não parece querer parar por agora. “Espero cometer muitos crimes cinematográficos no meu futuro”, contou. Viggo Mortensen disse que, nos bastidores, ouvia Cronenberg murmurando algo que achava ser latim, até entender a citação vinda do filósofo alemão Friedrich Nietzsche: “Se você quer viver, tem que estar preparado para morrer”. O cineasta entende como poucos o estranho limiar entre morte e vida.