Wagner Moura traduziu um soneto de Shakespeare. Está no livro Sonetos de Shakespeare: Faça Você Mesmo, que reúne, entre outros, a tropa de elite da tradução nacional: Lázaro Ramos (que “lembra” ter passado dias pensando em uma só palavra), Jorge Furtado e Fernando Meirelles. Na pena de Wagner Moura, o verso final do Soneto nº 71 (“And mock you with me after I am gone”) ficou assim: “Te sacaneará. E eu já morri. Fudeu.” Wagner Moura é o Bardo do Bope. O Capitão Nascimento de Stratford-upon-Avon. Ele senta o dedo em Shakespeare com a mesma naturalidade com que seu personagem fuzila um traficante da Rocinha. E ainda convida você a fazer o mesmo.
Escrevi o parágrafo acima em 2010. Bons tempos aqueles em que a intelligentzia brasileira se limitava a traduzir clássicos estrangeiros para o português das celebridades.
Agora, com captação de dinheiro público autorizada pelo Ministério da Cultura, a (re)escritora Patrícia Secco lançará uma versão de “O Alienista” (1882), de Machado de Assis, em que as frases estão mais diretas e palavras são trocadas por sinônimos mais comuns. Segundo ela, os estudantes se desinteressam dos livros de Machado porque há “cinco ou seis palavras que não entendem por frase”. “A ideia não é mudar o que ele disse, só tornar mais fácil”, declarou a (re)escritora à Folha. Quatro anos depois de Shakespeare: Faça Você Mesmo, Patrícia faz Machado de Assis por ela mesma. A história de um médico de loucos que terminou ele próprio no hospício finalmente chegará às Casas Verdes da educação nacional em formato à altura. O Brasil vai bem, obrigado. Em breve, teremos o Prêmio Jabuti para Melhor Livro Simplificado do Ano.
Eu perdi a chance de entrar nessa disputa. Quando quis tornar mais acessível a obra de outro grande autor brasileiro, acrescentei cerca de trezentas notas de rodapé para explicar, contextualizar e indicar leituras complementares a respeito dos trechos mais difíceis de compreender, escrevi um texto de apresentação mostrando que educar vem de “ex ducere”, que significa “levar para fora”, e publiquei o livro pelo maior grupo editorial do Brasil. Nunca me ocorreu a ideia de alterar uma linha sequer dos textos originais, nem pedir verbas ao MinC para uma edição de 600 mil exemplares, muito menos construir um túnel com 60 mil livros no vale do Anhangabaú para o lançamento nacional. Estou quase arrependido, até. Se eu tivesse “descomplicado” (e ok: “esquerdizado”) diretamente Olavo de Carvalho, o Jabuti imaginário já estaria no papo. O militante petista Chico Buarque não há de concorrer nessa categoria.
António Lobo Antunes, “complicado” escritor português, afirmou há anos: “O argumento ‘temos de pôr as pessoas a ler’ é idiota: o que temos é de ensinar as pessoas a ler. Até Lenine compreendia isto, ao afirmar que a arte não tem de descer ao povo, é o povo que tem de subir à arte. Claro que não é apenas um problema português, é um problema universal.” No Brasil das soluções agravantes, fazer a arte descer ao povo – e ainda dar uma acariciada em sua preguiçosa cabecinha – é dever de Estado. Se poesia é o que se perde na tradução, como escreveu Robert Frost sem nem conhecer Wagner Moura, literatura é o que se perde na versão reescrita, que ao menos rende alguns trocados para os participantes. A Folha não informou o quanto. O site do MinC é pior que o do Obamacare para descobrir. Mas que importa? Depois que Valesca Popozuda virou uma “grande pensadora contemporânea” e Gabriel, O Pensador do Enem, as questões de prova finalmente terão Machado “Secco” – sequinho mesmo – de Assis.
Será que ele vai dar beijinho no ombro também?
Felipe Moura Brasil – https://www.veja.com/felipemourabrasil
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