Na semana passada, uma tela sem título de Jean-Michel Basquiat foi vendida, em leilão da Sotheby´s de Nova York, pela embasbacante quantia de 110,5 milhões de dólares. Em São Paulo, no Instituto Tomie Ohtake, está chegando ao fim (o último dia é domingo, 28) uma exposição de Yoko Ono. Com o título O Céu Ainda É Azul, Você Sabe…, a mostra reúne sobretudo instruções da artista para que o espectador interaja com suas obras (há, por exemplo, um quadro em branco no qual os visitantes podem martelar pregos). Não, os dois eventos não têm relação direta entre si. Só os agrupei porque o grafiteiro americano que morreu de overdose e a performer japonesa que até hoje carrega a fama injusta de ter acabado com os Beatles são ambos objeto do ódio hidrofóbico de um tipo particular da cultura atual: o filisteu que odeia arte contemporânea.
O filisteu que odeia arte contemporânea não faz distinção nenhuma entre artistas diversos, pois, para ele, tudo o que é contemporâneo não presta. O filisteu que odeia arte contemporânea não sabe combinar sapato, meia e calça mas está sempre discursando sobre a Beleza, com maiúscula. O filisteu que odeia arte contemporânea fala da Capela Sistina como o ápice da arte ocidental mas não saberia nomear cinco contemporâneos de Michelangelo (“Tinha o Leonardo e… Como era mesmo o nome das outras Tartarugas Ninja?”). O filisteu que odeia arte contemporânea, quando lhe perguntam as razões de seu ódio, tira do bolso do colete (proverbial, pois com frequência ele usa uma camiseta puída do Iron Maiden) sempre os mesmos dois exemplos: o tubarão do Damien Hirst e a Virgem pintada com cocô de elefante de Chris Ofili. O filisteu que odeia arte contemporânea diz que é liberal mas é atacado de um bruto ressentimento social sempre que um artista de vanguarda faz sucesso no mercado. O filisteu que odeia arte contemporânea cultiva, a respeito de galerias, bienais e museus, teorias conspiratórias dignas de Dan Brown. O filisteu que odeia arte contemporânea acredita que a decadência começou já com os impressionistas. O filisteu que odeia arte contemporânea, igualmente confuso nas suas ideias estéticas e políticas, deita regras sobre arte que não seriam estranhas à cartilha de um Jdanov, mas ataca o esquerdismo de Picasso.
Como um exemplo do tipo que caracterizei ou caricaturei no parágrafo anterior, ofereço Robert Florczak, astro de um vídeo da Prager University – centro de divulgação do pensamento conservador que em geral produz peças mais inteligentes e interessantes do que esta. Florczak aparece creditado como artista e ilustrador, mas não conheço seus feitos na área. Como crítico, é um desastre. Sentencioso, afeta um rigor que é desmentido pelo ridículo gráfico que aparece lá pelos dois minutos do vídeo. Vejam, que em seguida eu faço alguns comentários.
Certo, o tiozão do vídeo não é tão tosco quanto o típico filisteu que odeia arte contemporânea. Ele deve saber o nome de todas as Tartarugas Ninja. Mas isso não o salva dos clichês cansativos e das bobagens atrozes próprias da figura que descrevi acima. Destaco quatro pontos fracos do vídeo:
1 – Aparece aí a confusa noção de “relativismo estético”. A intenção, creio, é fazer com que a arte ruim seja um fenômeno análogo ao relativismo moral pós-moderno – a bizarra doutrina segundo a qual temos de estender nossa compreensão à “alteridade” de culturas que praticam a excisão do clitóris de crianças. Só que usar a mesma palavra para designar duas coisas de ordens tão diferentes não produz magicamente uma coisa única (eis aqui, se não me equivoco, a falácia da equivocação). De resto, já se fez muita arte medíocre perfeitamente dentro de critérios acadêmicos que nada tinham de “relativos”.
2 – Não, os critérios para julgar arte não são meramente subjetivos, e há parâmetros, sim. Até aí, concordo com Florczak. Mas tais critérios e parâmetros são mais dinâmicos e complicados do que essa conversa altiva sobre “altos padrões” permite imaginar. Um exemplo: logo no início do vídeo, o mestre-escola Florczak apresenta The Rocky Mountains, do paisagista Albert Bierstadt, como exemplo de grande arte. Eu diria que existem critérios objetivos para qualificar esse quadro como kitsch de calendário. Alguém discorda?
3 – Os tais “altos padrões” não “produziram” O Nascimento de Vênus. Quem produziu O Nascimento de Vênus foi Botticelli.
4 – As bienais, mostras, documentas e galerias de todo o mundo andam atulhadas de porcarias, fraudes, empulhações mercadológicas? Sim. Mas, de outro lado, figuras como Mark Rothko, Lucien Freud e Richard Serra também se impuseram ao mundo da arte na era do tal “relativismo estético”. Pode até ser que a franca picaretagem seja dominante no mercado artístico, mas, para confrontá-la, é preciso sensibilidade para fazer distinções – e sensibilidade é tudo o que falta ao filisteu que odeia arte contemporânea. A evidência de que Florczak carece de discernimento, aliás, aparece em um truque baixo, lá pelos três minutos do vídeo: ele apresenta uns borrões imprecisos e nos diz que, informados de que aquela imagem era um quadro do Pollock, seus alunos a cobriram de elogios rasgados. Tratava-se, na verdade, de um avental sujo de tinta. Os alunos, pelo jeito, merecem seu mestre: eu, que tenho a mais rudimentar das educações artísticas, de cara vi que aquela porcaria não era um Pollock.
Não, a arte não morreu e a cultura não está em decadência, por mais que esses refrões desgastados sejam periodicamente repetidos pelos trombeteiros do apocalipse (caso de Mario Vargas Llosa no equivocadíssimo A Civilização do Espetáculo). Quem souber ler, ver e ouvir encontrará por aí muita coisa vital, remodelando (e não relativizando) os parâmetros com que fizemos arte até aqui.
***
Minha diatribe contra o filisteu que odeia arte contemporânea foi longa, mas necessária para restabelecer certas distinções elementares. Agora que o terreno está limpo, resta dizer algumas palavras sobre os méritos artísticos do Basquiat e Yoko Ono, artistas que motivaram este texto. Pois lá vai:
O quadro milionário de Basquiat é um troço horroroso.
A exposição de Yoko Ono em São Paulo é uma constrangedora bobagem.