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Intervenção

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Mallu Magalhães tem de aprender que artista nunca pede desculpas

A cantora mais sem sal do planeta foi acusada de racismo porque havia dançarinos negros em um clipe seu. Sua resposta foi uma covardia artística inaceitável

Por Jerônimo Teixeira Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 27 out 2017, 12h10 - Publicado em 26 Maio 2017, 18h30
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  • Ainda não contornei o tormentoso cabo do meio século e já estou me transformando no tiozão ranheta que abusa da expressão “sou do tempo em que”. Sim, sou do tempo em que músico pop precisava ter atitude, presença, alcance vocal, entre outros atributos que hoje estão ultrapassados (ou ainda não? Que idade terá a PJ Harvey?).  É por causa dessa limitação geracional que a figura e voz miúdas de Mallu Magalhães nunca me despertaram interesse. Não sou dos que correm para o YouTube quando alguém avisa que a cantora paulista lançou um novo clipe. Nesta semana, porém, a curiosidade jornalística me obrigou a ver o mais recente vídeo de Mallu: é que pesava contra ela, na Corte dos Justiceiros de Rede Social, uma condenação sumária por racismo.

    Mallu Magalhães, racista? “Não pode ser!”, pensei. Até o físico mignon da moça parece demasiado frágil para abjeções dessa monta. Alguém consegue imaginá-la à frente de uma banda de thrash metal, gritando impropérios contra os imigrantes e fazendo o Sieg Heil? Quebrei minha cabeça para descobrir que tipo de atitude ofensiva caberia no figurino sempre tão discreto de Mallu. Só consegui visualizá-la como sinhazina, languidamente recostada em um sofá, no meio de dezenas de unicórnios de pelúcia (todos branquinhos), lendo Caçadas de Pedrinho, enquanto uma mucama  no canto esquerdo da tela, quase saindo de quadro alivia seu calor abanando um imenso leque de penas de avestruz.

    Mas não, minha pobre imaginação não chegou nem perto da real causa da ofensa. Que se resume ao seguinte:  tem negros dançando no vídeo da música Você Não Presta. Vejam só:

     

    O agradável sambinha da Mallu infringiu um sem-número de regras que só a histeria militante é capaz de inventar. Onde já se viu uma mulher branca, só porque é a estrela do vídeo, se postar à frente dos dançarinos negros? Parece que há ainda algum problema com o fato de os dançarinos estarem suados ou besuntados. Levanta-se ainda um dedo puritano contra a “hipersexualização da mulher negra” e esta foi a acusação mais absurda: até parece que alguma coisa, ao som de Mallu Magalhães, pode ser hipersexualizada! E aí vem todo aquele jargão manjado:  “racismo estrutural”, “reforço de estereótipos”, “apropriação cultural”.
    A patrulha da correção étnica, tão velha e tão chata, não vai sair de cena tão cedo, infelizmente. O barulho que ela faz costuma ser inversamente proporcional à relevância da suposta ofensa denunciada. Eu nem teria me dedicado ao tema se a coisa parasse na gritaria. Mas então Mallu Magalhães resolveu dar atenção para o coro dos justiceiros. A cantora explicou as razões do vídeo em uma nota no Facebook. Pior: ela se desculpou.

    Malluzinha diz que ficou “muito triste” porque o clipe de Você Não Presta ofendeu certas pessoas, e pede desculpas a essas pessoas tão sensíveis. Pô, gente, ela também “rejeita e combate” o racismo, né? O texto, embora breve, é insuportavelmente brumoso (o adjetivo aqui não diz respeito a bruma ou névoa, mas à colunista lacrimosa do El Pais on-line). Na passagem mais inacreditável, a cantora lamenta que sua música possa ter mais de uma interpretação possível. Sim, a polissemia tornou-se um defeito estético: “A arte é um território muito aberto e passível de diferentes interpretações e, por mais que tentemos expressar com precisão uma ideia, acontece de alguns significados, às vezes, fugirem do nosso controle.” Ora, o que escapou do controle não foram os “significados”, que neste em caso em particular nem são tão ricos assim, mas a paranoia dos intérpretes que viram racismo onde ele não existe (incidentalmente, o que o pedido de desculpas diz sobre os dançarinos que teriam participado de um clipe potencialmente racista? Então eles não foram capazes de perceber os tais significados descontrolados?).

    Depois de reiterar o pedido de desculpas, Mallu diz que o episódio foi uma “oportunidade de aprender”. Só que ela não aprendeu nada que preste. Tudo o que ela deveria ter aprendido – aliás, tudo o que ela já deveria saber antes mesmo de fazer a rima infeliz de “cicatriz” com “diretriz” é o seguinte: artista não pede desculpas.
    Não, isso não é um salvo-conduto para que os artistas sejam cretinos na vida cotidiana. Como pessoa física, sempre que seu pezinho sambista pisar sobre o pé de outra pessoa, Mallu Magalhães está obrigada a pedir desculpas. Questão de bons modos. Mas um artista jamais deve pedir desculpas pelo que faz em sua arte. Philip Roth nunca pediu desculpas aos grupos judaicos e aos movimentos feministas que se melindraram com seus romances. Quentin Tarantino não pede desculpas porque os personagens de seus filmes empregam a odiosa palavra nigger. Na praia de Mallu Magalhães, Madonna não pediu desculpas quando católicos consideraram blasfemo o clipe de Like a Prayer.

    Todo artista que pede desculpas limita a margem de liberdade criativa do artista vizinho: no próximo vídeo de cantora pop brasileira, a dançarina negra decerto vai vestir burca – e que Alá nos livre de jamais vermos novamente qualquer traço de sensualidade em uma mulher que dança! Não é preciso abraçar o ingênuo ideário do artista como eterno transgressor para compreender que a arte, muitas vezes, confronta o que é consensual, sobretudo quando o consenso se forma em torno de  fabricações ideológicas projetadas para avançar a causa da censura, como a tal “apropriação cultural”. Mais do que nunca, um artista não pode se acovardar diante da pressão social, venha ela de que grupo vier.

    ***

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    Disseram que eu voltei americanizada? Essa mania do pedido de desculpas idiota por ofensas imaginárias talvez tenha começado no centro do Império. Eis aí o humorista Bill Maher sapateando em cima dessas bobagens. Em inglês, sem legendas.

     

     

    ***

    A julgar por alguns comentários, parece que meu post anterior também ofendeu certas pessoas delicadas. O filisteu que odeia arte moderna não gosta de ser chamado de filisteu. Paciência. Não sou artista, mas não vou pedir desculpas por aquele texto. Também não pedirei por este. Os ofendidos que me ofendam. E não me convidem pra festa nenhuma, que eu não presto.

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